23.12.07

cartinha

Papai Noel, se ainda der tempo, queria trocar aquele namorado modelo Gianecchini por alguns dias de sol antes do fim das minhas férias. Se não der, não se preocupe, fico com o Gianecchini mesmo. Papai Noel, gosto muito de vc.

13.12.07

desejo de natal

"Vou ficar acordado até mais tarde pra ver se Papai Noel aparece e me dá um pouco de sorvete de creme." A frase de um menino de rua, numa dessas reportagens de fim de ano, nunca mais saiu da minha cabeça. Entra Natal, sai Natal e eu continuo pensando no menino. Tem mais de vinte anos, mas ainda hoje essa frase me maltrata. Pois vem chegando de novo o Natal e, com ele, o menino. O menino que hoje é um homem, mas que é sempre o meu menino. Onde estará? Vivo, morto, feliz? Quem esperará? O que desejará hoje em dia? O que pensaria se soubesse que passou Natal a Natal comigo? E que meu Natal traz sempre árvore, presente, festa e a dor de que Papai Noel pra ele nunca chegou? Eu e o menino nunca nos conheceremos, mas, como em todo dezembro, já estamos juntos de novo. Que este seja o melhor dos Natais pra ele. Que ele esteja bem, rindo e comendo montes de sorvete de creme. E que Papai Noel, que nunca me falhou, traga de presente este ano notícias do meu menino.

24.11.07

lenda urbana de verdade

A moça bonita entra no bar, prega os olhos na tela e não vê nada além do jogo. Aproveita os intervalos da partida pra mandar uns beijos rápidos pro namorado e é só. É louca por ele, mas a Seleção vem em primeiro lugar. Está vidrada na tevê quando outra moça se aproxima e joga dois copos de cerveja em sua cabeça. A moça bonita não entende nada, sobretudo quando a outra moça diz: "é pra vc aprender a não fazer mais isso!" Isso o quê, pensou a moça bonita e agora encharcada, que nunca tinha visto a outra antes. A outra moça perde a paciência de vez. Levanta-se, pega dois copos cheios de cerveja e parte pra dar uma lição na moça bonita. Vira tudo na cabeça dela, sem ligar pro bar lotado e, diante da cena, calado. Ainda se dá ao trabalho de explicar: "é pra vc aprender a não fazer mais isso!" E sai, satisfeita. O rapaz na varanda bate com o olho na moça bonita dentro do bar e mal se contém. Tenta se concentrar no jogo, disfarça, xinga o juiz, mas não consegue parar de olhar pra ela. É ataque, moça bonita, escanteio, moça bonita, tiro de meta, moça bonita. Chega a perder o gol por causa da moça bonita. E a danada retribui. Finge que só quer saber do jogo, mas volta e meia lança uns beijos rápidos pro radiante rapaz. É bom que sejam rápidos mesmo, ele pensa. Já pensou se a Maria vê?

20.11.07

vovó não perdoa

Vovó se diz ofendida com Fulana, amiga de longa data. É que não foi convidada pro aniversário da netinha dela. E a senhora queria ir, Vovó? Claro que não, mas a Fulana tinha a obrigação de me chamar. Não adianta argumentar que a Fulana lhe fez foi um favor, que ninguém aguenta festinha infantil, e ela bem sabe que a Vovó nem tem criança pra levar. Não, Vovó ergue o dedo, interropendo a defesa. A Laura também não tem e foi convidada. Foi mesmo desconsideração da Fulana, não tem desculpa. Não adianta discutir, Vovó tem sempre razão. E, de mais a mais, tem o direito de se ofender com quem quiser. Vovó conta também que foi convidada pelo filho da Fulana pro batizado da caçula. Tá vendo, Vovó, o problema era mesmo o incômodo da festinha, pro batizado a senhora foi convidada. Mas aí foi o Fulano, não a Fulana. Ele, sim, rapaz muito educado, sempre gentil comigo, vou mandar um belo presente. Como mandar, a senhora não vai? Ah, não vou, não, o Fulano é filho da Fulana. Ela não me prestigia, também não prestigio o batizado. Aí é caso de falar de advogada pra advogada: mas, Vovó, a senhora sabe que ofensas são personalíssimas, não se transferem de mãe pra filho. O argumento jurídico não vale de nada. Ofendeu, Vovó não perdoa nem a última geração. Manda entregar uma medalhinha de prata e dá o assunto por encerrado.

31.10.07

a copa do mundo é nossa

A novidade estourou com tudo: Brasil, Brasil, a pròxima Copa do Mundo é no Brasil! As pessoas comemoram pelas ruas, os fogos explodem, a euforia é total. Antenada, a brasileirinha recebe a notìcia em tempo real e não faz por menos. Sobe na cadeira e grita, pro café todo escutar: Brasil, Brasil, é o Brasil, mesdames et messieurs! È isso aì, rapaziada! A multidão não enlouquece, como a brasileirinha esperava, mas e daì? Brasileiro sozinho faz a festa. Brasil, Brasil, grita sem parar a brasileirinha, batendo no coração verde e amarelo. E tanto fez que acabou num hospiciozinho parisiense. Em St. Germain, tà, que a brasileirinha pode ser louca, mas de boba não tem nada. Vai voltar pra ver a Copa, é claro, mas até là, sò pra garantir a hospedagem gratuita, de vez em quando sobe numa cadeira e manda uns Brasiiiiil, Brasiiiiil, que hotel em Paris é muito caro.

ps. A brasileirinha acorda de madrugada com o texto na cabeça. No meio da brincadeira, a carga da caneta acaba, mas a brasileirinha não se dà por vencida e parte pro làpis de olho. Com brasileiro não tem quem possa, mesdames et messieurs!

16.10.07

dos tempos da vovó

Essa é dos tempos da Vovó. A mulher vinha andando pela estrada de terra, com a marmita do marido na cabeça, quando ouviu um barulho inédito. Virou pra trás e viu dois olhos esbugalhados e brilhantes, abrindo alas pro bicho enorme que avançava pra cima dela. Vai me comer, pensou a mulher, e disparou mato adentro. Ficou lá, agachada atrás de uma árvore, tentando descobrir que bicho era aquele. Era um dragão. Mas isso digo eu, que a mulher nunca tinha visto dragão nenhum pra saber. Era um dragão furioso, que rugia e ameaçava quem aparecesse pela frente. Não com fogo, é verdade, mas com buzinadas realmente de assustar. Mas isso digo eu, que a mulher tratou foi de ficar bem quieta pra não atrair a fera. Foi encontrada só no fim do dia pelo motorista do bicho. Tinha comido a marmita.

6.10.07

barriga bonita

Camila pára no meio da sala, encara Mauro e levanta a blusa. Mauro olha pra Camila, morenaça com quem o filho vem saindo. Barriga bonita, pensa, mas logo desvia o olhar. Camila é do filho. Dá o assunto por encerrado, mas bate com o olho na barriga e reconsidera. Pensando bem, os dois saíram só algumas vezes, são quase estranhos. Se ela agora me prefere, fazer o quê? Aí lembra que é pai, que pode tudo menos magoar o filho. Olha de novo pra barriga. Toda durinha, dando vontade de pegar. Vai quase pegando mesmo, mas contém o gesto. Sair já é um passo pra namorar, daí pra casar é um pulo. Que estranha, nada. Camila é quase sua nora, isso sim. Melhor acabar com a brincadeira, antes que Camila se empolgue e aí sabe-se lá onde isso vai dar. Abaixa a blusa, menina, vc vai casar com o meu filho. Como o senhor adivinhou? Tá vendo, eu sabia. E fica aí me mostrando essa barriga? Abaixa a blusa, anda. Primeiro o senhor tem que pôr a mão. Que é isso, a gente não pode. Pode, sim, o senhor tem que sentir. Pai nenhum é de ferro e Mauro acaba agarrando a barriga de Camila, que sorri e diz: Paulo, diga oi pro vovô!

5.9.07

mas, vovó...

Uma senhora nos aborda no meio da rua se dizendo caixa do banco da Vovó. Conta que está com um problema de dinheiro, pergunta se a Vovó não pode dar uma ajuda, promete devolver tudo direto em conta. Vovó não nasceu ontem. Tira a espertalhona de letra. Trabalha no banco, é? E em qual caixa? No onze? Ah, sim. E o que houve com seu dinheiro? O marido bebeu? Coitada, marido que bebe é um castigo. Não, não chore, senhora. Senhora? Ângela, ah, sim, prazer, Sra Ângela. Bom, de quanto a senhora precisa? (Vovó começa a me deixar nervosa) Quinhentos? Ah, que pena, só tenho trezentos. Já ajuda? Então está ótimo. Só um minutinho, sra Ângela, o fecho desta bolsa é muito difícil. Me ajude aqui, minha filha. É hora de interferir: mas, Vovó... ( Vovó me interrompe com um cutucão) Vamos, menina, a Sra Ângela está esperando. Mas, Vovó... ( Vovó me interrompe...) Pronto, sra Ângela, aqui está. Mas, Vovó... ( Vovó me ...) Pague quando puder, não se preocupe. Passe lá em casa depois para um chazinho. Vcs têm meu endereço no banco, não? Então até breve, sra Ângela. Mas, Vovó... (...) Vovó! Como é que a senhora entrega seu dinheiro pra uma desconhecida? Desconhecida, não, eu e a sra Ângela somos amigas. Amigas de onde, Vovó? Do banco, ora. Mas, Vovó, o banco não tem caixa onze! Não tem? Ué, então em que caixa a Sra Ângela trabalha? Não trabalha, Vovó, a sra Ângela é uma golpista. Vovó nem se importa: bom, tomara que ela passe pro chazinho mesmo assim.

25.8.07

nem tanto

A madame esquece os chocolates no táxi. Foram comprados na esquina, não na Suíça ou na Bélgica, mas a madame não se conforma com a perda. Entra em casa afobada, corre pro interfone atrás do motorista. Tarde demais, mas a madame não se rende. Determinada, liga pra cooperativa, relata o ocorrido, se descabela. Só sossega quando a telefonista promete que o motorista vai voltar mais tarde pra entregar o tesouro. Obrigação dele, ela diz. Quem mandou não verificar se a cliente tinha esquecido alguma coisa? Passada uma hora, a madame, sem dar ouvidos à turma do deixa disso, telefona de novo. A telefonista atende e ela explica que é Glória, a dos chocolates, que está querendo saber quando é que o motorista vem. No fim do expediente? É que meus filhinhos estão aqui chorando, se recusam a dormir sem os chocolates que a mamãe ficou de trazer. Dá pra me dar o celular dele? Obrigada, assim eu mesma acerto tudo. Não vai ficar com meus chocolates, resmunga, enquanto telefona. Alô, seu Antônio, é Glória, a dos chocolates. É que meus netinhos estão aqui chorando... Netinhos! Filhinhos pra desconhecida, netinhos pro conhecido. É, parecia que os chocolates tinham acabado de vez com o juízo da madame, mas nem tanto, nem tanto.

7.8.07

timidez

Maria chega radiante, exibindo as rosas que ganhou de Pablo com um cartãozinho anônimo. Não foi ele, retruco. Como é que vc sabe? Tenho certeza. Pois eu é que tenho certeza de que foi ele. Tem como, se o cartão não está assinado? Porque o Pablo, ora, só o Pablo pra me mandar rosas. E sem nem assinar, tão romântico! Pois eu aposto que não foi ele, tanta gente pra te mandar flores. Quem, por exemplo? Ué, por exemplo, só por exemplo, eu. Vc, e a troco de quê? Pronto, agora romantismo é exclusividade do Pablo, é isso? Claro que não, mas daí a dizer que foi vc já é exagero. Eu sei, eu avisei que era só um exemplo, até porque se eu fosse mandar flores pra uma mulher compraria logo dúzias e dúzias e não um buquezinho mixuruca feito esse. Muquirana como vc é, duvido. Pois eu é que duvido que tenha sido o Pablo. Pode duvidar o quanto quiser, foi ele. Pablo aparece. Maria, encorajada pelas rosas, pula em seu pescoço. Me afasto pra não ver a cena, amassando no fundo do bolso a nota da floricultura.

28.7.07

ser balzaquiana

Ser balzaquiana não é não arranjar mais um namorado após o outro. Ser balzaquiana não é não ser páreo pra um bando de menininhas que só ganham de vc no quesito juventude e olhe lá. Ser balzaquiana não é ser chamada de tia pelas tais menininhas - e os respectivos meninões. Ser balzaquiana não é ter que ouvir toda hora a mãe contar que a filha da Fulana também casou, só falta mesmo vc. Ser balzaquiana não é engolir o olhar de pena das pessoas quando descobrem que vc ainda é solteira, ou melhor, que vc é solteira, que solteira balzaquiana não desencalha mais, não. Ser balzaquiana não é saber que ninguém acredita que vc é, caramba, uma solteira feliz. Ser balzaquiana não é, consequentemente, ter toda hora alguém com um amigo “perfeito pra vc” pra te apresentar. Ser balzaquiana não é sentir o mundo todo numa só vibração: “case, case, case”. Ser balzaquiana não é a avó, desesperada, te empurrar pro padeiro, caixeiro, cachaceiro, o que vier. Ser balzaquiana é ouvir a mesma avó perguntar por que vc não namora o Fulano, sendo o Fulano o priminho que vc ajudou a criar. Ser balzaquiana, queridos, é o fundo do poço.

12.7.07

a pessoa certa

Fugindo da agitação, a avó se instalou numa mesinha escondida. De lá, não via a pista de dança, mas conseguia acompanhar bem o movimento no salão. Quase não viu os noivos, por isso estava ansiosa para assistir ao vídeo da festa. Toda a família se reuniu para o evento e a avó não disfarçou o orgulho ao rever o neto, lindo, esperando a noiva no altar. Saboreou novamente a saída da igreja, os cumprimentos, o discurso do noivo, esquecendo-se dos pais, ela vibrou, para declarar que não seria ninguém sem a avó querida. Tinha feito mesmo um bom trabalho. Ali estava o neto, advogado em plena ascensão, casado com uma moça fina, de boa família, linda. O vídeo começou a mostrar o que a avó, do seu canto, não tinha visto. Os noivos abrindo a pista de dança, os aplausos dos amigos, uma beleza. O encanto não durou muito. Rapidinho, a noiva se revelou. Dançava sensualmente, rebolava, lançava olhares fatais pro noivo, que, sem alternativa, sorria e balançava os dedinhos, como se estivesse aprovando o espetáculo. Disfarçava, mas por dentro estava morto, a avó sabia. Aquilo não era moça pra ele. Despudorada, a noiva parecia esquecer que estavam no meio da festa e não na intimidade da lua-de-mel. Apertava o noivo, se oferecia toda, uma vulgaridade. A avó admirou a classe do neto, tentando manter a pose diante do furacão. Ah, se tivesse visto na hora, teria interrompido o vexame, esclarecendo logo aos convidados que o neto tinha cometido um erro. Erro quanto à pessoa! Era isso, a avó pensou. Advogada renomada, conhecia de cor o Código Civil : " Art. 1556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro. Art. 1557. Considera-se erro essencial quanto à pessoa do outro cônjuge: I – o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado." Começou a tramar a anulação do casamento, que era evidente que o neto não poderia viver com uma noiva como aquela. Passou a observar o vídeo com ainda mais interesse, registrando os momentos que ajudariam a demonstrar o terrível erro. A noiva se exibia, dava tudo. A avó, com o plano em mente, adorava. Muito bom, chegou a exclamar em voz alta, enquanto a noiva descia até o chão. Era o suficiente, a avó pensou, juiz nenhum deixaria de reconhecer que aquela era a pessoa errada. O câmera filmava os convidados, alguns visivelmente chocados. Lá estava a Raimunda, tão chique, com aquela idade toda, a Isabela, bastante elegante, quem diria, a mãe do noivo, linda de morrer. Nisso aparece o casal novamente. A noiva, já de chinelos e ainda se acabando e o noivo... O noivo com um olhar feroz, a gravata na cabeça, pingando de suor enquanto ensaiava uns passinhos. Nada grave, a avó se tranquilizou, efeito passageiro do mau exemplo da noiva. Com o tempo, porém, o escândalo do noivo foi deixando o da noiva muito pra trás, que noiva se exibir é uma coisa, noivo é outra. O noivo se contorcia inteiro, rebolava levantando as perninhas, arrancava risos da platéia. Para horror da avó, não se limitava a dançar com seu par, como a noiva fazia. Ia puxando as convidadas e rodopiando com uma após a outra. Depois voltava pra noiva, agarrava, dava uns beijos abusados que nem na novela das oito tinha igual. Ah, se tivesse visto na hora, a avó teria interrompido o vexame, dando umas boas palmadas no neto bem no meio do salão. Terminada a sessão, a avó abriu os braços pra noiva e disse: vc é perfeita pra ele, querida! Seja bem-vinda à família!

24.6.07

a número um

A neta explica pro produtor, marido da amiga, que a avó tem oitenta e um anos, que é louca pelo Rei, que daria tudo pra conhecê-lo e sabe-se lá quanto tempo mais ela vai viver, poxa, quebra esse galho. Com isso, consegue a pulseirinha pra entrar no camarote depois do show. A avó mal se aguenta de emoção. Manda lavar o blazer azul, que ela que não é boba de visitar o Rei com outra cor, mal dorme na véspera, fica pronta às três da tarde e às seis já quer sair, mesmo morando ali na esquina. Chegam com duas horas de antecedência, mas a avó não tira os olhos do palco, como se o Rei fosse aparecer a qualquer minuto. No que as mesas vão sendo ocupadas, a neta espalha pra todos que a avó é a fã número um do Rei e que hoje, graças a ela, vai encontrá-lo. A avó, meio encabulada, diz que não queria dar trabalho, mas que a neta é mesmo muito especial, qual outra enfrentaria aquele programa só por causa dela? A neta, modesta, diz que não se importa, que o que interessa é a felicidade da avó. O show começa e a avó parece que entra em transe. Pra despertá-la, a neta de vez em quando grita uns eu te amo, Rei. A avó não deixa de acompanhar, aos gritos de eu também! Quando o Rei ataca de Jesus Cristo, a neta avisa que é hora de partir pro camarim. A avó ainda resiste um pouco, porque sair de show do Rei sem pegar uma rosa no final é o mesmo que não ir, mas acaba concordando. Vai ganhar rosas no camarim, a neta lembra, e ainda fotos, beijos, tudo que uma fã de oitenta e um anos merece. De fato, o Rei recebe a avó com todo o carinho, conversa, beija, abraça. A neta, comovida, acompanha a cena. Quando a avó, dando-se por satisfeita, resolve ir embora, a neta pula no pescoço do Rei. E agradece a gentileza, e diz que não esperava que ele fosse perder tanto tempo com uma senhora, que só um rei como ele mesmo. E enquanto vai falando, vai se enroscando no Rei. Sorri pra ele, conta que a avó anda viciada em Emoções, mas já teve fase de ouvir Cavalgada sem parar. Muito boa música, Cavalgada, suspira. Começa a cantarolar baixinho: Vou me agarrar aos seus cabelos, pra não cair do seu galope... E alisa a cabeleira de chapinha do Rei, que sorri meio de lado e repete seu brigado, brigado, sem ousar se mexer. Quando, mais empolgada, resolve mordiscar a orelha real, ameaçando cavalgar por toda a noite, o Rei faz um discreto sinal pra um segurança e acaba com a festa. A neta sai arrastada, mas da porta ainda grita: Não adianta nem tentar me esquecer, Rei, um grande amor não vai morrer assim. E vão-se embora, ela e a fã número dois.

14.6.07

a verdadeira prova

Catarina resistia, mas Vítor queria porque queria uma prova de amor. Mal ela entrava no fusquinha azul bebê, Vítor começava a lengalenga. Vc me ama? Claro que sim, amor. Então prova. Mas, Vítor, vc tem dúvida? Vítor ignorava a pergunta: se vc me ama, prova. Aí era um tal de beijo pra cá, abraço pra lá, Catarina pedindo menos, Vítor pedindo mais... As juras de amor de Catarina não serviam de nada, Vítor não abria mão da tal prova. Toda noite era igual. O fusca azul bebê estacionava, Catarina entrava e Vítor exigia a prova. A moça não cedia, o rapaz não desistia e no encontro seguinte a agonia recomeçava. E assim termina a história, sem que se saiba se Catarina se rendeu ou não. Agora, que ela amava Vítor, lá isso amava. Amava tanto que nunca explicou que aquela que ele queria era uma prova menor. A maior ela dava todos os dias: desfilar, diante da vizinhança inteira, num fusquinha azul bebê.

6.6.07

o último romântico

O Pablo é mesmo um romântico. Liga o som e encosta o celular pra namorada ouvir. Tem coisa mais romântica do que botar música melosa pra tocar por telefone? O Pablo é mesmo muito romântico, mas já está exagerando. Pô, Pablo, vc tá aí há uns cinco minutos, a menina vai cansar. Vai nada, deixa ela. E continua lá, todo bobo. Uns dez minutos depois, finalmente fala: alô, Taís, só mais um pouquinho, já vou falar com vc, tá? Taís? Sua namorada não se chama Joana? Chama, mas não tô falando com ela, não. Essa é a Taís, atendente da Claro. Mal contendo a alegria, Pablo cola novamente o celular no rádio e comenta: pena que tá tocando essa musiquinha, tinha que ser um pancadão. Tinha.

26.5.07

palmas pra ela

O carro de som estaciona no meio da rua. Os manifestantes, líderes disso e daquilo, vão se revezando ao microfone. Esbravejam, esbravejam, enlouquecem a indefesa vizinhança. No que a confusão parece diminuir, chegam mais quatro ônibus, um deles trazendo o ídolo máximo da multidão, sindicalista velho de guerra. Mal começa seu discurso, morre de tiro certeiro. No jornal da noite, as teorias conspiratórias se multiplicam. Analistas, artistas, astrólogos, vêm todos opinar. Acusam situação, oposição, forças ocultas, ninguém escapa. Pois erraram feio. Descobriu-se depois que a assassina era uma mulher qualquer, que de política queria distância. Vinha suportando bem quatro horas de manifestação, mas se descontrolou quando ouviu o quadragésimo nono companheiros e companheiras! Decidida a viver seu dia de fúria, buscou a espingardinha do marido e disparou. Nada mais natural. Essas passeatas enlouquecem mesmo a pessoa, deixam no chinelo as mais mirabolantes torturas chinesas. As palavras de ordem, as buzinas, as musiquinhas transtornam qualquer um. Ou vc adere e sai pra rua e pra luta, ou perde o juízo e atira. Calma, ninguém aqui defende a violência, que fique claro. Repitamos juntos: violência, não, violência, não, violência, não! Dito isso, vamos ser francos, palmas pra ela.

17.5.07

cena de cinema

A paixão começou quando o patrão, por engano, acertou na coxa dela o beliscão que era pro filho. O patrão era um grisalho charmoso, mas antes do belisco a babá nem tinha reparado. Dali pra frente, caiu de amores. Passou a sonhar com o galã todos os dias, cada vez inventando um final ainda mais feliz. Ela vinha sempre de Sharon Stone. Já ele, impossível decidir, ora era George Clooney, ora Richard Gere. A babá não era páreo pra patroa, sabia. Nunca tentou transformar os filminhos em vida real. Se contentava só de ver o patrão à noite, quando ele entrava no quarto pra beijar o filho. Queria porque queria um beijo daqueles, na testa mesmo, nada cinematográfico, mas, não sendo páreo pra patroa, nem pedia. O auge da glória era quando o patrão falava com ela. Não passava de um meu filho já dormiu?, mas, pra ela, a música subia, a câmera dava um close nos dois e o resto do mundo sumia. Até ligava pras amigas pra contar. Hoje ele falou comigo. Te pediu em casamento? Não, perguntou do filho. Já é alguma coisa, vc tem que se declarar. Que nada, respondia, não sou páreo pra patroa. A babá acabou se cansando da situação. Ela era a mocinha, afinal de contas, e a mocinha pode até ficar sozinha, mas tem direito à última cena. Sabendo que não era páreo, optou por um final triunfante. Deixou pra trás patrão, patroa, menino e um bilhete que dizia: João Cláudio, eu te amo, The End. E foi-se embora sem olhar pra trás, arrancando lágrimas da platéia.

9.5.07

blind date

As amigas combinam uma tarde de compras no shopping novo. Do táxi, Joana telefona pra avisar que já saiu. Descobre que Beatriz está numa rua próxima e decide ir até lá. No local, há um carro azul parado na esquina. O de Beatriz é vermelho. Joana telefona para conferir. É você nesse carro? Sou, troquei mês passado. E vc, cadê? Tô aqui no táxi. Vem logo, tenho um monte de fofocas pra te contar. Também, tô louca pra te ver. O taxista perde a linha, gargalha. Que foi, moço? Desculpe, senhora, mas eu nunca vi nada assim. Assim como? Assim, um encontro assim. Assim como, meu senhor? Assim, dona, duas desconhecidas, é a primeira vez no meu táxi. Joana acha graça e nem esclarece. Paga, agradece e vai embora. Perde a chance única de dizer: peraí, moço, que se eu não gostar eu volto.

5.5.07

o que realmente me espanta

Um dia uma mulher morreu lavando o cabelo no salão. Não que aquilo pra ela fosse novidade, nunca lavava em casa. Três vezes por semana, passava no salão. Ela e o cabeleireiro eram íntimos. Trocavam confidências, ficavam horas naquela função. Enquanto a conversa estivesse animada, o cabeleireiro ia lavando e relavando a cabeleira. Às vezes, chegava a passar umas cinco ou seis mãos de xampu, fora o condicionador. A mulher saía com torcicolo, mas nunca interrompia. A verdade é que era doida por ele. Quando não tinha o que contar, inventava. Falava sem parar pra ele não parar de lavar. No dia da morte, criou um enredo tão intrincado que, percebeu, precisaria de umas três lavagens pra desenrolar. Tentou interromper o relato, mas o cabeleireiro não quis saber de cenas dos próximos capítulos. Lavou os cabelos mecha por mecha, descoloriu, hidratou, fez de tudo, só pra não perder o final. A mulher, de tão apaixonada, foi em frente. E haja paixão, viu, pra suportar uma hora e meia numa daquelas cadeiras de salão. É uma forma sofisticada de tortura. O corpo vai escorregando devagar enquanto a cabeça fica presa no escorredouro. Com o tempo, parece que as duas partes vão se despregar. Dói que é uma beleza, mas a mulher não se rendeu. Antes do fim da história, porém, não resistiu e morreu. Pelo que deu no jornal, a pressão estourou uma veia no cérebro, qualquer coisa assim. O cabeleireiro se desesperou. Não tanto pela cliente, mas pela história sem fim. Quem já descobriu no final da leitura que faltava a última página do livro há de lhe dar razão. Uma história inacabada é um castigo quase tão grande quanto uma lavagem no salão. O cabeleireiro ainda tentou reanimar a mulher, mas não teve jeito. Ela morreu mesmo, lavando o cabelo no salão. Parece incrível, reconheço. Soa mais como invenção de cronista maluca, mas aconteceu de verdade. Pra ser sincera, o que realmente me espanta é que não morra uma por dia.

2.5.07

quase nada

O menino pergunta à mãe quem é a criança suja e maltrapilha dormindo na rua. É um pobrezinho, a mãe explica. E o menino, que nunca tinha visto um daqueles: mas pobrezinho não tem casa, mãe? Pelo visto, não tem. Pobrezinho não tem carro? Não, com certeza não tem. Mãe, pobrezinho tem computador, prancha, videogame? Não, pobrezinho não tem nada. Nem celular e ipod? Não, meu filho, nada mesmo. O menino não desiste: mãe, pobrezinho tem peru?

26.4.07

mais uma de altar

A tia-avó fez saber, aos presentes e ausentes, que a renda do vestido era francesa, importada para a ocasião, e que a bolsinha era Chanel - vintage, fazia questão de dizer, que a última moda era esse negócio de vintage. A tia-avó não abriu o cortejo, como pretendia, mas veio em boa posição. Desfilava como se estivesse numa passarela, controlando o marido, fazendo questão de se distanciar dos padrinhos da frente. Não estava ali para ser encoberta, queria brilhar. Bem no meio da igreja, tropeçou. Não chegou a cair no chão, foi pior. Ficou suspensa pela mão do marido, balançando-se de um lado pro outro. Ah, pra que falar na renda do vestido e na grife da bolsa? Se tivesse avisado que ia cair daquele jeito, a tia-avó teria sido desde o início a estrela da noite. Se bobear, até no lugar da noiva teria entrado. Aliás, pra que noiva diante de uma cena daquelas? A tia-avó desmontou toda. O vestido rasgou, o cabelo soltou, a bolsinha caiu, a igreja inteira riu. Riu pra dentro, engolindo, mas riu. Depois de um tempo balançando, a tia-avó conseguiu se equilibrar. Levantou e fez que não foi nada, feito criança que apanha e diz que não doeu. Jogou o topete pra cima, largou a bolsinha pra trás e seguiu em frente, tentando manter a classe que restava. No fim da cerimônia, veio ela falar com a Vovó: Nair, vc viu o tombo que eu levei? E Vovó, que estava sentada no meio da igreja e quase foi atingida pela cunhada em queda: tombo, que tombo? Ué, Nair, o que eu levei na igreja, vc não viu? Não, não vi, vc caiu? Caí, uai, bem na sua frente. Negar um tombo daqueles chega a ser uma ofensa à sanidade mental da vítima, mas Vovó negou. Fiquei até ofendida pela tia-avó, mas ela adorou: ah, se a Nair, que é tão atenta, não reparou no tombo, que, pensando bem, foi mais um tropeço, uma topadinha, ninguém deve ter reparado também. Assim, a tia-avó convenceu-se de que não houve nada e apagou o episódio da memória. Infelizmente, só da dela.

22.4.07

móimóimói

A mãe troca a fralda da filha mais nova, o bebê lindo, gordo, louro de cachinhos, olhos azuis enormes e boca pequenininha. A outra filha, normal como toda morena e dois anos mais velha, distrai a irmãzinha. Canta uma éspecie de mantra, mómóimói, e, hipnotizado, o bebê nem se mexe. Vou adotar esse móimóimói, pensa a mãe, acostumada a penar pra trocar as fraldas da irriquieta caçula. Acabada a função, a mãe se senta pra olhar as filhas brincando juntas. A cena é de tocar qualquer coração materno: a mais velha tenta enfiar na minúscula boca da mais nova uma pecinha de lego, a mais nova, quase sufocada, tem os olhinhos azuis arregalados e cravados no teto, a mais velha repete baixinho: morre, morre, morre. Pra desgosto das crianças, a chata da mãe interrompe a brincadeira.

17.4.07

quase perfeito

A igreja, pequenininha, estava linda, lotada de flores e pessoas queridas. A noiva estava mais linda ainda e toda à vontade no altar, aproveitando seu momento. No rosto do noivo só se via felicidade e não os cinco pontos que ele conseguiu levar na boca na véspera do grande dia. A mãe da noiva, tirando a filha, era a mulher mais bonita da noite e o pai estava emocionado na medida certa e emocionante até não poder mais. O casamento foi todo um encanto, com direito até a gracinha do pajem. A festa, depois, foi de arrebentar e escancarou a alegria dos noivos e dos convidados. Pra não dizer que foi perfeito, teve, sim, um defeitinho. Faltou a noiva caprichar um pouco mais na hora de jogar o buquê. Mas foi só isso.

10.4.07

pra jc e toda a nação

A avó veio sozinha pro Rio aos dezesseis anos. Estranhou no começo, mas não demorou a assimilar as novidades. Em pouco tempo, perdeu o medo do bonde e o arzinho caipira, dominou a cidade e suas principais atrações. Não havia nada que dissesse respeito ao Rio que ela não conhecesse. Mistério mesmo, só o flaflu. Quebrava a cabeça tentando entender o que a palavrinha queria dizer, mas não conseguia. Ficava esperando a oportunidade de perguntar às amigas sem parecer ridícula, mas nenhuma tocava no assunto. Acabou concluindo que aquilo era conversa de homem, secreta. Chegava a corar quando ouvia os rapazes falando em flaflu. Aos domingos, com o burburinho no auge, nem saía de casa. Moça sozinha, melhor não brincar com flaflu. A avó passou a vida atormentada pela dúvida até descobrir, já velhinha, o que era um flaflu. Quem explicou foi a neta, que já nasceu sabendo o que era Fla x Flu, Fla x Vasco, Fla x Bota, a freguesia inteira. E que sabe, ah, como sabe, que os quinhentos e sessenta e oito do galinho valem muito mais do que mil.

30.3.07

que país é esse?

O programa do dia seguinte é uma caminhada pelos arredores da cidadezinha. À noite, ligam a tv pra conferir a previsão do tempo. A mocinha começa com a capital: a meteorologia previu para hoje sol pela manhã, possibilidade de chuva no início da tarde, calor à noite. Não choveu e a noite está fresca, acrescenta. Continua relatando em detalhes a previsão do dia pro país inteiro e o efetivo comportamento do tempo. No fim, quando já subiam os créditos, acrescenta: amanhã deve fazer sol.

28.3.07

mosquitos da barra

Estavam naquela fase de deixar no outro milhares de marcas. Da tradicional no pescoço às mais discretas, na barriga ou na sola do pé. O cenário era quase sempre a Barra, não se sabe bem por quê. Um dia, o rapaz se empolgou além da conta e fez nas pernas da moça uma série de marcas, enormes e inconfundíveis. Pra disfarçar, ela entrou em casa reclamando de mosquitos. Que a Barra estava insuportável, que era mosquito pra todo lado, que olha só como ela estava. E o pai, de olhos nos roxos: é, minha filha, esses mosquitos da Barra são famosos. Não tem namorada que escape.

26.3.07

e vai entender a vovó

Se Vovó fosse católica, teria que deixar de ser. Ou não poderia passar a vida culpando a Santa Igreja pelos males do mundo. Ou não poderia fazer pouco do Papa. Ou teria que engolir todas as críticas. Se Vovó fosse católica, sua vida não teria graça. Como não é, Vovó se diverte. Implica com a Igreja o dia inteiro, aproveita qualquer deixa pra encaixar o assunto. Começa já no café. Passa do pão ao iogurte falando mal do Papa. Entra pela gelatina falando mal do Papa. Chega ao mamão falando mal do Papa. Nessa etapa, acrescenta: olha, quem come mamão todos os dias é o Papa. O Papa sabe das coisas. Se ele come, é porque é bom.

23.3.07

o vírus

A mãe vivia de regime. Descobria os mais mirabolantes: da cerveja, da gordura, do chocolate... Curiosamente, não emagrecia nada. Às vezes, fazia uns de saladas e grelhados, mas nem esses adiantavam. A mãe não entendia por quê. Se todo mundo faz dieta e emagrece, por que logo ela, que só dava umas escapadinhas, não perdia nem um quilo? Um dia, descobriu a razão. Saiu eufórica pela casa, sacudindo o jornal. Tá aqui, ó! A culpa é dele. De quem, mãe? Do vírus! O vírus da engorda, o vírus que vem na poluição. Já reparou como nos centros urbanos as pessoas são mesmo mais gordas? E eu aqui me torturando sem saber que carregava um vírus invencível! Pronto, agora acabou regime. Sou uma pessoa doente, tenho que me cuidar. Pega ali o pudim pra mamãe. Mas, mãe, por que que esse vírus foi atacar logo vc? Porque nós vivemos na rua mais poluída da cidade! Toda hora dá no jornal. Vc precisa se informar, meu filho. Mas por que só vc na rua inteira? Porque nosso prédio fica bem ao lado do depósito de lixo, e nós moramos logo no primeiro andar. Tá vendo? Faz sentido. Ai, por que não descobriram isso antes? Mas, mãe, e por que que aqui em casa esse vírus só atacou vc? Isso, meu filho, a ciência ainda não sabe explicar.

21.3.07

meu primo me contou

Meu primo Pedro me contou que uma amiguinha leu na escola uma crônica escrita pela amiga da mãe. Chamava-se Mariana, a amiga. O texto falava de uma moça presa no banheiro de um shopping. Coincidência, também já escrevi sobre isso. E não é que a heroína da Mariana amiga da mãe da amiga do meu primo se chamava Aninha, nome que volta e meia aparece nas minhas crônicas? E não é que a Aninha dela teve uma dor de barriga tão terrível quanto a minha? E o final, que engraçado, também era igualzinho. Eu e meu primo recitamos juntos as últimas palavras. Comecei a achar que podia ser eu a tal Mariana, que o texto lido pela filha da amiga era meu. Estava tentando lembrar se tenho alguma amiga mãe de uma Fernanda quando meu primo me destruiu. Falou o título: Uma Verdade Inconveniente. Poxa, o meu é Plano Perfeito. É, acho que essa Mariana não sou eu, não.

19.3.07

seu sutiano

A neta bate na porta do banheiro. Vó, seu sutiano. A avó, comovida com a declaração inesperada, responde: também te amo, minha netinha. Não, Vó, seu sutiano. Eu sei, meu amor, Vovó também. Abre, Vó, seu su-ti-a-no! Querida, Vovó te ama muito, mas agora está no banho. Vencida, a neta pendura o sutiã na maçaneta e volta pra tevê. Da janela, a avó grita: Inês, esse sutiã vem ou não?

15.3.07

às gargalhadas

Os primos mais velhos é que eram os tais. Guga bem que se esforçava para acompanhá-los, mas ficava sempre pra trás. Era o caçula, a criança. Amigo dentro de casa, desconhecido do lado de fora. Um dia, Guga finalmente fez sua primeira viagem com os primos. Foi uma semana de farra, em que Guga, fascinado, acompanhava e imitava cada passo dos mais velhos. Mal conseguia disfarçar a inexperiência, especialmente com as meninas, mas se esforçava. Acabava sempre sozinho, mas, na última noite, surpreendeu. Não só foi o único a conquistar uma das moças, como conseguiu logo a mais bonita e mais loura de todas. Espantados, os primos até cederam o quarto pra Guga namorar melhor. Ele foi, assustado, mas eufórico. Na manhã seguinte, foi difícil satisfazer a curiosidade dos primos. Deu tudo certo, disse. Pelo menos, não aconteceu nenhuma tragédia. Acontecer, aconteceu, mas Guga só descobriu mais tarde, quando deu pela falta da carteira, com todo o seu dinheiro dentro. Ter perdido a carteira, os dólares e o santinho que guardava desde pequeno não foi tão ruim. Duro foi aguentar a gozação dos mais velhos. Duro foi ouvir, e acreditar, que se a moça não fosse uma ladrazinha, se não estivesse interessada só no roubo, nunca teria sequer sorrido pra ele. Duro foi pensar que ela estava agora às gargalhadas, torrando o dinheiro todo. Foi duro, mas Guga sobreviveu. Depois de uns dois dias, já nem se lembrava de mais nada. Ah, antes que eu me esqueça, a carteira ficou jogada atrás da tevê. Quem descobriu foi a arrumadeira, ao preparar o quarto para o próximo hóspede. Torrou o dinheiro todo, às gargalhadas.

12.3.07

passatempo

Depois de ano e meio de preparativos, havia chegado o grande dia. A noiva entrou radiante na igreja lotada, se deliciando com cada detalhe. Enquanto ouvia as palavras do padre, pensava na inveja que as convidadas solteiras estariam sentindo. Admirava a decoração, perfeita, com cascatas e cascatas de flores caríssimas. Saboreava o impacto causado pela daminha, realmente a mais linda que já tinha visto. Lembrava o orgulho do noivo ao vê-la desfilar, parecendo uma princesa no vestido todo bordado. Mal podia esperar pela segunda etapa, a festa. Foi antecipando os cumprimentos, a valsa, o jantar, a alegria da amiga encalhada que, com sua ajuda, ficaria com o buquê. Já estava pela lua-de-mel quando o padre afinal fez a pergunta e ela respondeu que sim, que queria, sim, se casar com o noivo. Viraram-se para trocar alianças e ela achou lindo quando o padre pediu que, antes, exibissem as mãos, o símbolo da união, para os convidados. Frente a frente, esticaram os braços, mantendo as mãos suspensas, encostadas uma na outra. Subiu a música e ela ficou ali pensando que aquele era o momento mais bonito da sua vida, que não poderia ser superado nem pelo nascimento dos filhos, cujas carinhas já começava também a imaginar. O noivo, brincalhão, ameaçava abaixar o braço e ela fazia que não com a cabeça, rindo. E agradecia a sorte de ter um noivo tão bem-humorado. Depois de alguns minutos, percebeu que o braço do noivo tremia sem parar e ameaçava despencar de verdade. Daí pra frente, só pôde pensar nisso. Sabia que a música ainda estava longe do fim quando o noivo, suado e um tanto pálido, avisou que suas forças tinham se esgotado. Apavorou-se, pois a igreja inteira morreria de rir se interrompessem a cena antes da hora. O noivo argumentou que o braço estava duro, cheio de cãimbras, mas ela implorou que ele agüentasse só mais um pouco. Apaixonado, o noivo atendeu. Quando a noiva já comemorava o fim da sinfonia, o noivo não resistiu e caiu. Caiu pra trás durinho, mantendo esticados o braço e a mão, como prometido. A confusão aí se instalou. Foi um tal de socorrer o noivo, de abanar a noiva, que já ia desmaiando também, de conter o chilique do cerimonialista, que o casamento acabou ficando por aquilo mesmo. O padre sorriu, satisfeito. Antes de dormir, riscou na lateral da cama mais um tracinho, o vigésimo segundo, pelo vigésimo segundo casamento interrompido no último instante. Arruinar casamentos, seu passatempo preferido.

10.3.07

eu te amo

Ângela jurava que era ele, sem nenhuma dúvida. Pretendentes não faltavam, mas ela só queria saber do olhos azuis. Vivia a sua espera, embora nem se conhecessem. Era justo isso que a encorajava. Tinha certeza de que quando se olhassem a paixão ia ser instantânea. De fato, um dia se encontraram e os olhos azuis grudaram nela. O dono dos olhos se aproximou, puxou assunto, deu a maior bola, como Ângela sabia que aconteceria. Foi aí que ela se apavorou e deixou escapar a grande chance. Bem que os olhos passaram a noite vidrados nela, bem que o dono se sentou sozinho, como que guardando lugar pra ela, mas Ângela, que pena, não encarou. Daí pra frente foi só amargura. Havia desperdiçado o momento único e agora só lhe restava esperar que aqueles olhos, de tão apaixonados, descobrissem seu endereço e aparecessem de repente num cavalo, e mandassem rosas todos os dias, e escrevessem cartas apaixonadas, e cantassem pra ela milhares de músicas, as mais bonitas, pra compensar sua agonia. Ângela foi definhando com a expectativa. Não pensava em mais nada, não tinha fome, não ria, não dava atenção nem pro Vítor, o lindo filho pequeno. Só não perdeu a esperança. Um dia, ao pé da porta, encontrou o que tanto esperara: um bilhete do olhos azuis. O bilhete que ia lhe devolver a alegria, a disposição, o interesse na vida, no trabalho, até no filho. Dizia, numa familiar caligrafia infantil: Ângela, eu te amo, assinado Chico Buarque.

3.3.07

receita

Pra despertar a inveja alheia, misture: um bom apartamento, o carro do ano, um namorado bonitão e, convenhamos, rico, um excelente emprego, uma bela conta bancária, um corpão. Mexa devagar e adicione: tendência a emagrecer, viagens ao exterior várias vezes por ano, nome em tudo quanto é lista vip. E o ingrediente que, sozinho, vale por todos os outros: uma cadeira no Maracanã. Nada provoca mais inveja do que a tal cadeira. Em dia de jogo, então, o dono da cadeira é o dono do mundo.

1.3.07

mas é verdade

O castelo ficava no alto do morro. Pra chegar lá, só de elefante. Escolhemos o nosso, enorme e com a cara toda pintada, e fomos. Sentamos de lado, com as pernas pra fora da sela, como as mocinhas de antigamente. Vovó cismou que seus sapatos iam cair e fez a viagem toda com as pernas esticadas e os pés apontados religiosamente para o alto. Não relaxou um minuto. Já mamãe se esbaldou. Pulava de um lado pro outro, ria sem parar, parecia criança. Eu e Vovó descemos logo que chegamos, mas mamãe se recusou a deixar o elefante. Queria a todo custo continuar montada enquanto fazíamos a visita. Acabou mudando de idéia, mas não sem antes tirar uma foto com o bicho. Não uma foto qualquer, que fique claro. Mamãe fez questão de posar se equilibrando na cabeça do elefante. Correu risco de vida. E ainda botou o ridículo chapéu do domador, vermelho e cheio de pêlos. Se vc nunca viu sua mãe plantada logo acima da tromba de um elefante, esquece. Não há como imaginar a cena. Não é uma pena que justo esse filme tenha queimado? Sem provas, duvido que alguém acredite na façanha da mamãe.

28.2.07

bisnáguis púris

O avô, capaz de viajar pelo tempo que for sem uma única parada, cede à pressão dos netos. Sabendo que a pausa não durará mais do que cinco ou, com sorte, dez minutos, disparam todos em direção à lanchonete, já formando fila. O avô vai perguntando o que cada neto quer e repetindo os pedidos ao balconista. Um cachorro-quente pra Luiza, um misto pro Tiago, um ovomaltine pro Pedro. E pra vc, Paulo? Bisnáguis púris, ele responde. Bis o quê, pergunta o avô? Bisnáguis púris, ele repete. Já irritado com a perda de tempo, o avô pergunta pela última vez o que o neto deseja. E ele, impassível: bisnáguis púris. O avô aí explode, condenando Paulo a terminar a longa viagem de barriga vazia. Fã número um do Mussum, seu trapalhão mais querido, Paulo prefere passar fome a admitir que o que quer é uma bisnaga pura.

26.2.07

crime impossível

Álvaro não vai desperdiçar a dor de cabeça da noiva. Toma seus cuidados: parte pra boate mais afastada da cidade e, nela, escolhe a moça sentada no canto mais escondido. Pra seu azar, a vítima é amiga da noiva e tem memória excelente. Esteve com Álvaro apenas uma vez, mas não esqueceu. Já ele, com a cabeça sempre cheia de moças, nem se lembrava dela. Na hora h, a surpresa: sou amiga da sua noiva. Apanhado, Álvaro nem discute, vira as costas e vai embora. Dá o noivado por perdido, mas, no dia seguinte, ainda tenta convencer a noiva de que foi a amiga quem se insinuou. Enfurecida, ela não lhe dá chance: não adianta mentir, minha amiga nunca me trairia. Repete isso, pede Álvaro, empolgado. Minha amiga jamais me trairia, e daí? Justamente, responde Álvaro. O crime era impossível! Crime o quê? Impossível, diz Álvaro, e cita de memória o art. 17 do Código Penal: " Crime Impossível - Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime." Trocando em miúdos: há casos em que, mesmo tentando, o crime simplesmente não pode acontecer. Matar um morto, por exemplo, é impossível. Pode-se usar faca, bala, veneno, não importa. Morto não morre duas vezes e ponto. Como o crime é impossível, não há punição nem pra tentativa. Sua amiga jamais te trairia, certo? Por mais que eu tentasse, o crime nunca aconteceria, não é mesmo? Então tá resolvido. Crime impossível, nada de castigo. Pode ir botando a aliança de novo no dedo.
E assim Álvaro se safa. Aprendam essa, meninos.

24.2.07

verbo intransitivo

O guia, indiano fluente em espanhol, faz as apresentações. Sou o sr. Ajay, este é o sr. Amar, nosso motorista. Vovó entra no carro fascinada. Amar, bonito nome. O sr. Amar, fluente apenas em hindi e inglês, devolve o Amar, fescdbjklok, com um yes, madam? Faço sinal de que não é nada. Ainda encantada, Vovó repete: Amar, é mesmo muito bonito, Amar. Amar, nrdofnbdfedkn, Amar. Yes, madam? Ela gostou do seu nome, explico. Dá pra parar de repetir o nome dele, Vovó? Mas eu não estou repetindo, só estou dizendo que Amar é muito bonito. Afdasfndkj fndklfedjkfnsd, wdfeefmd Amar dsa effhnehkjn. Yes, madam? Mas ele não entende, ele acha que vc está falando com ele. Não adianta argumentar, Vovó insiste no mantra. Amar... Amar... Yes, madam, yes, madam, faz coro o sr. Amar. No dia seguinte, só de ver Vovó, o sr. Amar já dispara um yes, madam atrás do outro. Assim contina por mais uns dois ou três dias, até Vovó, irritada, exigir um motorista menos tagarela. O sr. Amar é substituído pelo sr. Matar. Vovó detesta o nome. Matar, que horror! Ou, aos ouvidos do motorista - que não sabia o que estava por vir -, Matar, hjkbmkawesdz!

22.2.07

use camisinha

Sem se importar com idade, respeitabilidade ou qualquer outra coisa, Armando rouba uma camisinha da gaveta do filho. Depois de dias de indecisão, tinha resolvido correr todos os riscos. Faz xixi na camisinha. Não satisfeito, vai à cozinha adicionar água e uma boa dose de azeite. Entra no quarto pé ante pé pra não acordar a mulher. Mal contendo a excitação, acerta a bomba em cima do grupinho que, toda noite, arma uma gritaria bem debaixo da sua janela. Contente feito um moleque, volta a dormir.

15.2.07

mais uma de amor

Beatriz conhece os zoológicos de todas as cidades que visita. Na verdade, escolhe as cidades de acordo com as atrações de cada um deles. Foi a Lisboa pra ver o bode de duas cabeças. A Barcelona, pra conhecer o gorila albino. A Nova York, só pra gastar horas olhando o urso polar neurótico. Despreza os pontos turísticos, só quer saber dos zoológicos. Chega a passar dois ou três dias em cada um, revendo seus animais preferidos. Uma vez, caiu de amores por uma lhama. Não que não tivesse visto outras, mas aquela era especial. No primeiro dia, ficou no fundo da jaula, mas esbanjou charme. No segundo, se aproximou mais e Beatriz até flagrou um sorriso. No terceiro, também se apaixonou. Ficou horas parada perto da grade, olho no olho com Beatriz, que mal podia conter a emoção pela conquista. A cada um que passava, dizia: olha só, ela é louca por mim. De fato, o bicho estava vidrado, nem se mexia. Foi juntando gente pra ver o espetáculo. Ela hipinotizou a lhama, disse um menino. Foram feitas uma pra outra, suspirou uma velhinha. Quando parecia que iam ficar naquele namoro pra sempre, a lhama rompeu o encanto. Numa das viagens do almoço do estômago à boca, cansou-se da mastigação e pôs tudo pra fora, num jato só, sem chance para Beatriz. Ainda pensou em dizer: muito prazer, lhama, animal ruminante, mas achou que não precisava. Voltou pro fundo da jaula em silêncio mesmo.

10.2.07

direto do seu coração pro meu

Reclamação por email, a dona do blog não encaminha nem pros comentários, mas eis que surge ele, o comentarista que nunca deixa de assinar, e conquista lugar de honra. É, cronista, diga-me com quem andas...

"hj é dia 10/ 02, e sua ultima croniqueta fos escrita dia 06/02. já são 4 dias sem uma nova. será que vc foi atacada pelo virus da máscara e está fazendo doce?, estou me sentindo um leitor traido, e se continuar assim, só irei ler outros blogs, como o do noblat,os do globo, e outros que tais.brasileiro é fogo. essa miscigenação não deu certo. Heil Hitler. vamos atras da raça pura. mistura campolina com piquira, com mangalarga, com árabe, dá só cavalo meiõ-sangue que não serve para nada. exagerei: para charrete deve dar."

ps. calma, querido, não me deixe, não.

6.2.07

não importa o destino

Vovó adora um portador. É só alguém anunciar que vai viajar e ela já se anima. O incauto conta que está indo, digamos, para São Paulo. Ótimo, Vovó diz, estava mesmo precisando de um portador para lá. Pede licença e volta com montes de pacotes, a ser entregues em quatro ou cinco endereços diferentes. Se, em vez de São Paulo, a pessoa for pra Manaus, não há problemas. Vovó se assanha igualmente e desce com a pacotada. Viajou, não importa o destino, é portador. Tem gente que não entende como ela tem sempre alguma coisa pra despachar. A verdade é que Vovó gosta tanto da função que chega a manter um estoque de caixas vazias, só pra não desperdiçar um portador. Sabe que os destinatários não vão entender nada ao abrir os embrulhos, mas não se importa. Dificilmente alguém pede explicações. Quando acontece, não perde a pose. Suspira, inocente, e diz: não tinha nada? Meu Deus, e eu achando que o portador era confiável...

4.2.07

ronaldinho

A irmã, toda orgulhosa, manda um email com a foto tirada ao lado do ídolo. Carolina faz pouco caso. Eu que não perco meu tempo batendo fotos com desconhecidos. Ainda mais no meio de um monte de gente, mal dá pra te ver. Mais tarde, Lúcia, filha de Carolina, estranha a foto no msn da mãe. Ué, que que essa foto do Ronaldinho tá fazendo aí, mãe? Foto do Ronaldinho, não, senhora. Foto do Ronaldinho comigo! Não tá me vendo ali no cantinho, não?

3.2.07

reino

Os adultos criaram no sítio o Reino Encantado das Crianças. Não tinha nada demais, era só um quarto transformado em sala de brincar. Puseram lá uns livros, uma mesa de pingue-pongue, uns velocípedes, acho até que uma televisão. O Reino Encantado das Crianças logo virou Reino só e era tão reino que tinha até um riachinho passando por dentro, pra gente se sentir mesmo num castelo, desses de ponte levadiça. Era lá que nós ficávamos, no andar de baixo, enquanto os adultos ocupavam o andar de cima. O Reino não foi feito pra nós, mas pra eles. Quando queriam conviver, crianças na sala, quando não queriam, já pro Reino. Funcionava muito bem, embora a gente resistisse um pouco, de charme. Difícil dizer quantos dos vinte netos aproveitaram mesmo o Reino. Talvez uns dez. Os cinco seguintes continuaram sendo despachados pra lá, mas se sentiam mais prisioneiros do que donos do castelo. Os cinco últimos, descobri outro dia, não só não freqüentaram o Reino como sequer sabiam que ele existia. A décima oitava neta, diante do "já pro Reino!" da prima mais velha, respondeu, animada: vou, sim! Onde fica esse reino? O fato nem mereceria nota, já que milhões de crianças de hoje não conhecem nada da vida das crianças de ontem. Mas, dos milhões de crianças de ontem, só dez conheceram o Reino. Isso sim vale o registro.

1.2.07

à nata da bandidagem

O ladrão entra na casa pelos fundos, passa a mão numas galinhas e foge. Vovô acorda com o alvoroço e se levanta a tempo de atingir o safado com seu revolverzinho de cabeceira. Aconteceu há muitos anos, claro. Hoje seria impossível. Começa que o ladrão já ia entrar atirando, sem chance pro Vovô. Ok, digamos que não, mas ia carregar um fuzilzão e o revolverzinho não ia dar pra nada. Se fosse hoje, qualquer arroubo de valentia do Vovô ia acabar em desgraça. Digamos que não mais uma vez. O ladrão tem o fuzil, não atira, Vovô também não e o assalto acaba em paz. Certo, mas e as galinhas? Ladrão de galinha hoje em dia perde a viagem. Acaba sendo forçado a levar jóias e que tais. Não é justo. Pois, em homenagem à nata da bandidagem, providenciei uma galinha bem gorda. Tá morando lá em casa, pro caso de algum ladrão de classe querer levar.

31.1.07

plano perfeito

Ana resistiu o quanto pode, mas, vencida pela dor de barriga descomunal, teve que ir ao banheiro no shopping mesmo. De dentro da cabine, ia ouvindo as pessoas passando, as portas abrindo e fechando, dava pra sentir que a fila estava grande. Só se recuperou muito depois e deu vergonha de encarar a multidão. Preferiu continuar fechada, esperando o tumulto acabar. O barulho diminuiu, ela já ia pondo o pé pra fora da cabine, mas viu que a faxineira ainda estava por perto. Recuou, não ia ter coragem de enfrentar o olhar que certamente diria "eu sei há quanto tempo vc está aí, que horror!". Ficou escondida enquanto a mulher cantarolava do lado de fora, esfregando o pano no chão. Quando a cantoria acabou, saiu. Saiu e descobriu que estava trancada no banheiro do shopping. Nem se importou. O banheiro era ótimo, tinha até um sofazinho, e o ar-condicionado continuava ligado. Resolveu aproveitar pra experimentar as compras do dia, se admirando por todos os lados nos imensos espelhos. Bem mais divertido do que no espelhinho de casa, com o marido reclamando da luz acesa. Quando se cansasse, era só ligar e pedir socorro. Viva o celular, Ana pensou, já espalhando as sacolas. Umas duas horas depois, teve um momento de pânico ao remexer a enorme bolsa e não encontrar o telefone, mas ele estava lá. Capinha vermelha, pingente de ursinho, foto da filha no visor e duas palavrinhas de arrasar qualquer quarteirão: sem serviço.

30.1.07

escondidinhos

O filho não suportava o cigarro da mãe. Reclamava tanto que ela passou a fumar escondida. Pra escapar da vigilância estreita, foi desenvolvendo topo tipo de estratégia. Guardava o maço debaixo do colchão e deixava sempre um cigarro atrás de um azulejo na cozinha, especialmente arrancado pra virar esconderijo. Inventou uma superstição e só saía pela porta dos fundos, depois de recuperar discretamente o tesouro. Combinou um valor fixo com o filho da vizinha pra que ele, algumas vezes por semana, viesse pedir sua ajuda com a mãe alcóolatra, que de álcool nunca tinha provado uma gota. Quando não havia outro jeito e a vontade apertava, se trancava no quarto e fumava por lá mesmo. Antes de sair, acendia um incenso e bebia umas gotinhas de perfume pra não deixar rastros. Julgava-se muito esperta, mas o filho percebia o golpe. Continuou reclamando do cigarro e, agora, do incenso, que também detestava. Um dia, porém, começou a queimar ele também um incensinho. Aprendeu a gostar do cheiro, pensava a mãe, sem reparar na cara de tonto e nos olhos vermelhos do garoto. Caía no próprio truque.

29.1.07

por um triz

Todo fim de tarde tem revista na fazenda. Os primos, perfilados na varanda, vão se apresentando um a um pra tia catar carrapatos. A tarefa é cumprida com rigor militar. Nem os carrapatinhos escondidos nos lugares mais inconvenientes escapam. Alguns recrutas suportam bem a provação. Outros quase morrem, mas com a tia não adianta choradeira. A Susana é uma que vive tentando escapulir. Num dia de especial agonia, chegou a jurar que gostava de ficar toda mordida, inventou que aquele carrapatão enorme na verdade era uma pinta, fingiu que ia desmaiar, fez de tudo. A tia não se comoveu, continuou numa luta de vida ou morte com o bicho. Todo mundo ficou por ali, acompanhando a batalha sangrenta. Quando já estava tudo por uma pata, com a vitória da tia mais do que certa, ela capitulou. Era mesmo uma pinta.

26.1.07

nomes feios

O assaltante joga a velhinha no chão e arranca seu colar com brutalidade. A filha grita feito louca, xinga o homem dos piores palavrões, dá um show. Já a velhinha se levanta com classe e diz que está tudo bem. Como tudo bem, mãe? Era seu melhor colar. Vc não ficou triste? E a velhinha: Fiquei mais de descobrir que vc sabia todos esses nomes feios, minha filha.

25.1.07

beija-flor

É enorme de gordo, mas nem pensa em fazer regime. Ao contrário, esforça-se pra comer cada vez mais. Quando pequeno, era impedido pela mãe de deixar comida no prato. Tem gente morrendo de fome, ela dizia, vc tem que comer tudo. No começo, não entendia como sua comilança mataria a fome alheia. Com o tempo, convenceu-se de que o que comia alimentava diretamente os famintos do mundo. Passou a comer mais e mais, mesmo sem vontade, certo de que assim não sobraria ninguém com fome. Já crescidinho, quase morreu de decepção ao descobrir que, apesar de seus esforços, tinha era gente morrendo faminta por aí. Por causa do baque, passou uns dois dias de cama, se recusando a comer, mas afinal pensou no jejum que estava impondo a milhares de pessoas e reagiu. Decidiu redobrar os esforços e vem dedicando a vida a uma comilança sem fim. Sabe que não vai acabar com a fome mundial, mas insiste. Como um imenso beija-flor, faz sua parte.

24.1.07

brinca direito, seu guarda

Eu e titia fomos paradas no alto do viaduto. Duas moças bonitas, sabe como é. O guardinha, muito gentil, pede os documentos do carro. Sem problemas, titia responde. Não tivesse ela trocado de bolsa e esquecido a carteira na outra, realmente não haveria problema algum. Como esqueceu, o guardinha anunciou que ia apreender o carro. Titia se desesperou. Fez um drama, até chorou. Exagero dela. Podímos ter sido assaltadas, pensa só. Muito pior. Ali, pelo menos, era a polícia amiga. O guardinha voltou pro próprio carro e de lá fez sinal chamando a titia. Ela ficou um tempo conversando com ele, depois veio me pedir dez reais. Não entendi o que pretendia com aquele dinheiro, mas ela estava tão nervosa que nem perguntei. Como tinha um ponto de jogo do bicho na subida do viaduto, imaginei que fosse fazer uma fezinha antes de partirmos pro depósito. Dali a pouco, volta ela: tudo resolvido, o cara aceitou os dez reais. Honestamente, não tinha me passado pela cabeça que titia fosse tentar subornar o policial com aquele valor. Fiquei orgulhosa da audácia dela. Não que eu concorde com o suborno, mas, convenhamos, foi um recorde. Além diso, reconheço que a situação era mesmo enrolada. A perspectiva de seguir pro depósito ou ficar a pé ali no alto àquela hora da noite realmente era dramática. Pra piorar, a titia ia precisar de um dinheiro que não tinha pra resgatar o carro. Enfim, não aprovo, mas compreendo o lado dela. Agora, que um policial se deixe subornar por dez reais, tendo milhares de carros dispostos a pagar muito mais, francamente, não dá pra admitir. Nesse ritmo, daqui a pouco a cervejinha não vai dar nem pra água mineral.

22.1.07

o nome da minha mãe

Antes de inventar o nome da minha mãe, Vovó queria que ela se chamasse Gloxínia. Mudou de idéia porque misturou o próprio nome com o do meu avô e adorou o resultado. Mamãe detesta. Se o nome é bonito ou não, nem vou discutir. Sendo da minha mãe, é obviamente o mais lindo do mundo. Agora, que tem problemas sérios de gênero e tonicidade, lá isso tem. No telefone, todos querem falar com o senhor fulano. Não tem erro, ninguém considera a hipótese do fulano ser fulana. Olho no olho é pior ainda. O nome da mamãe é oxítono, mas o mundo está convencido de que é proparoxítono. Mais ou menos assim: me chamo Oxítona. Proparoxítona? Não, caramba, Oxítona, Oxítona, tenho vontade de gritar, mas mamãe já nem liga. Outro problema do nome é que ele faz a mamãe mentir. Ela vive contando que um admirador pintou o nome numa pedra por causa dela. A pintura até que é verdade, a foto comprova, mas dizer que foi pra ela? Também adora falar que é dela a música argentina que ganhou um certo festival. Tudo bem que antes de cantar o músico, todo apaixonado, explica que aquilo em português é o nome de uma garota. Tá no disco, é só ouvir, mas dizer que foi pra ela? Mamãe ainda jura que conheceu a Carmem Miranda e ela se encantou com aquele nome tão diferente, tão proparoxítono. Prova, ela não tem, mas fica a palavra dela contra a da Carmem, que certamente sacode todos os balangandãs no túmulo quando ouve a mentirinha. Mamãe não está nem aí. Mente que é uma beleza e nem se preocupa com o mau exemplo. Deve achar que é privilégio de quem não se chama Maria.

20.1.07

aposta

Os cinemas de hoje, apertados e idênticos, não são de nada. O Ópera é que era bom. Enorme, com poltronas que corriam pra trás e não pra cima e tela que guardava uma distância respeitosa da gente. Foi onde eu vi e revi montes de filmes. O São Luiz e o Largo do Machado também eram sensacionais. Não sabia e ainda não sei qual era qual. Sei que um ficava dentro da galeria e era um pouco menor, mas ainda assim imenso. O outro, que ao ser retalhado em quatro me causou uma das maiores dores da vida, era gigantesco. A gente podia ir ver qualquer estréia lá sem medo, sempre sobrava ingresso. Tinha também o pornô da São Clemente. Esse eu não sei se era grande, mas era maravilhoso. O letreiro exibia sem pudor os títulos em cartaz, todos extremamente lúdicos. "Pintos voadores encontram vaginas descontroladas" numa semana, " A volta das enfermeiras suculentas" na seguinte. Cinema era a maior diversão. Pra completar, o pornô da praia, meu favorito. O letreiro sempre foi o mesmo: Dois Filmes de Sexo Explícito. Mesmo sabendo de cor, nunca deixei de ler. O Dois Filmes de Sexo Explícito foi um dos grandes responsáveis pelo meu equilíbrio emocional na infância. A qualquer dia ou hora, tava lá: Dois Filmes de Sexo Explícito. Nunca mudava. Isso dá segurança à criança. Um dia, o Dois Filmes fechou. Me desestruturei, acabei na terapia. Se o Dois Filmes de Sexo Explícito tinha acabado, tudo podia acabar. Quando eu procurasse, não ia ter casa, pai, escola. Foi um período difícil. A responsável pela tragédia, soube depois, foi titia, que sussurou no ouvido do prefeito que cinema pornô perto de colégio era um perigo. Não é verdade, aquele cinema sempre foi meu amigo. Ele e os outros todos de quando eu era pequena. Os cinemas de hoje não se deixam envolver, não fazem amizade, são uns insensíveis. Ninguém vai sentir a falta deles. Aposto.

18.1.07

vovó e pompéia

Cresci ouvindo Vovó falar de Pompéia. Que era incrível, que foi descoberta por um fulano que dedicou a vida a isso, que tudo que queria era ir a Pompéia. Quando fui à Itália, não me importei com o desvio, fiz questão de visitar as ruínas. Achei realmente sensacional e decidi voltar com Vovó. Fomos, um tempo depois. Vovó não se continha de tanta empolgação. Mal chegamos, tudo mudou. Ela fechou a cara e resolveu voltar pra Roma com meia hora de passeio. Mas por quê, Vovó? Muito triste pensar que tantas pessoas foram assassinadas por aquele vulcão horroroso. Aliás, e se ele resolve entrar em atividade? Vamos embora logo. Achei melhor nem discutir. Se ela visse os moldes em gesso dos corpos das vítimas, era capaz de entrar em choque. Admito que a reação da Vovó foi bem razoável, afinal o que aconteceu foi mesmo uma tragédia. O que continuo me perguntando, no entanto, é se foi só lá que Vovó descobriu o que malvado do Vesúvio aprontou com Pompéia.

17.1.07

veraneio

A queda do meu primo da Veraneio foi incrível. A Veraneio era o carro da Vovó. Tinha um formato engraçado e era de um dourado que não se vê mais. Não há equivalente hoje em dia. Normalmente, viajávamos os primos no Fiat da titia. Era um horror. Não que o Fiat fosse ruim. Naquela época, era até um carrão, mas nós cinco tínhamos que nos apertar atrás e um sempre ia sentado na pontinha do banco porque não dava pra todo mundo encostar. Já a viagem na Veraneio era ótima. Sobrava espaço e a Vovó ainda ia da frente jogando uns peixinhos de chocolate que infelizmente entraram em extinção. Só era chato quando a gente ia com a titia. Não a do Fiat, outra. Aí o Ricardo, como estava com a mãe, reclamava sem parar e trocava de lugar a toda hora. Numa dessas, acabou abrindo a porta e caindo numa curva. A titia virou pra trás bem na hora e o agarrou pelo braço em plena queda. Até hoje não entendo como ela fez. Ricardo caiu do carro, mas não chegou a cair na estrada. Foi arrastado por alguns metros e o pneu da Veraneio passou por cima do pé dele, fazendo feridas geométricas nos dedinhos, mas não quebrou nada. Depois disso, meu primo virou mesmo um rei. Queria ir deitado no banco, com a perna esticada, e nós que nos empilhássemos uns sobre os outros no cantinho que sobrava. Tanto fez que cansou a paciência da titia e teve que enfrentar a outra metade da viagem sentado no chão da Veraneio. Com a perninha esticada, do jeito que queria.

16.1.07

prazeres rasos

Perdeu a mulher e entrou num luto fechado. Comia, dormia, não fazia mais do que o necessário. Cortou tudo que era prazer. Com o tempo, passou a beber uma cachacinha no final do dia. Mais um pouco, comprou um balanço, que instalou na varanda. Ficava lá, bebendo e se balançando, mas continuou vestindo preto. Aos que perguntavam, explicava que o luto estava mantido porque a viuvez acabara com sua alegria. Mas e a cachacinha, Samuel, e o balanço? Prazeres rasos, respondia, prazeres rasos não contam. Acabou acrescentando uma vitrolinha à cachaça no balanço. Quando a música animava, até arriscava uns passinhos pela varanda. Aos que estranhavam a valsa enlutada, a mesma resposta: prazeres rasos, prazeres rasos. Começou a juntar gente pra aproveitar a vitrola, novidade no local, e a dança solitária virou baile. Toda noite tinha, entrava pela madrugada e só acabava no dia seguinte. Samuel, cada vez mais empolgado, passava a tarde preparando a festança de logo mais. Os prazeres rasos se tornaram profundos, mas nem assim ele desistiu do luto. Quando alguém criticava, dizia que era um pobre viúvo, vivendo ainda sua dor. Mas e as festas, a bebedeira? Prazeres rasos, prazeres rasos, insistia, sem se dar conta da mudança.

15.1.07

draminha

A menina conta que largou as aulas de equitação. A amiguinha pergunta a razão e ela diz que os donos dos cavalos se separaram. A amiguinha não entende a relação. A menina explica que o cavalo é da moça e a égua do moço. Ela gosta da moça e da égua. Com a separação, ficou a pé. A amiguinha quer saber se a menina ficou triste. Fiquei, ela responde, mas é assim mesmo, separação é sempre um drama.

14.1.07

conference call

O senhor, aflito, telefona para avisar que minha avó está passando mal. Posso falar com ela, senhor? Não, ela não está em condições de falar. Tudo bem, estou indo aí. Qual o nome da rua? Não sei. É só ler a placa, senhor. É que daqui não dá pra ler. Pergunte a um passante, então. É que não tem ninguém aqui. Antes que eu dissesse mais alguma coisa, perdeu a paciência e desligou. Lamentei não ter agradecido o amparo a vovó numa rua deserta e sem nome, mas pra minha sorte ele ligou de novo em seguida. Dessa vez, socorrendo titio. Mamãe atendeu e mostrou-se preocupadíssima com o irmão que nunca teve. Quis falar com ele, saber onde estava, tudo mais. O gentil senhor, com toda razão, novamente se impacientou e, aos berros, anunciou o sequestro. Disse que ia picar, cozinhar, fazer todo tipo de delírio gastronômico com titio se não recebesse o resgate. Do meu lugar dava pra ouvir o que dizia e fiquei bastante preocupada. Tendo ou não tio, é sempre assustador saber que a vida dele está entre um ensopado e um estrogonofe. Mamãe também se apavorou. Gritou e implorou pelo irmão até começar a escorregar da cadeira e se espatifar, revirando os olhinhos. Ela para um lado, o telefone para o outro. Não entendi na hora por que mamãe tinha jogado nosso telefone novinho no chão, mas soube depois que era para o senhor ouvir o barulho e perceber que ela estava mesmo tendo um ataque. O que pretendia estatelada no chão, no entanto, nunca compreendi, já que não estávamos numa conference call. Mas que diferença isso faz quando se tem uma avó e um tio sequestrados e uma mãe infartada?

12.1.07

selton

O Selton Mello não sabe, mas me persegue. Mamãe o conheceu numa festa na casa da titia. Não sei o que ele fez, mas ela se encantou. Veio me perguntar, toda animada: minha filha, por que vc não namora o Selton Mello? Assim, como quem oferece um sorvete. A empolgação só diminuiu quando eu lembrei que já tinha namorado. Mamãe gostava do moço, então pôs o Selton de lado. Quando o namoro acabou, anos depois, voltou à carga. Ótimo, minha filha, agora vc já pode namorar o Selton Mello. Fique claro que mamãe não está procurando um genro desesperadamente, nem tem fascínio especial por artistas. O Selton é que fez mesmo algum feitiço com ela. Nem adianta eu dizer que, Mello por Mello, prefiro o Danton. Mamãe quer porque quer o Selton. Um dia, demos de cara com ele na rua. Saí correndo, antes que ela mandasse um: Selton! Lembra de mim? Deixa eu te apresentar minha filha, perfeita pra vc. Minha última cartada foi mostrar uma revista com uma chamada escandalosa: Selton Mello confessa que é galinha mesmo. Casar, nem pensar. Exultei. Mamãe não ia querer filha solteira. Tive certeza de que era o fim, mas ela fez pouco caso. Isso é coisa da imprensa, minha filha, não liga, não. O Selton agora vai participar do novo filme da titia. Mamãe ainda não soube, mas é questão de tempo. Ele que se prepare.

11.1.07

morta de medos

A moça dorme sozinha e quase morre de medos. Medo tem de vários tipos e ela conhece todos. Tem o medo insano, daquela coisa que não existe, nem está lá, mas assusta mesmo assim. O medo sensato, do ladrão que pode realmente estar do outro lado da porta. Tem o medo clássico, do escuro. O medo que ataca no meio da madrugada, tipo fome. O medo óbvio, efeito colateral de filme de terror tarde da noite. O medo de fantasma, que só existe na sua imaginação. Tem um medo brincalhão, o de barulho de passos que se aproximam, mas não chegam nunca. O medo frágil, que se mata só de acender a luz. Tem uns medos infantis, que passam com a idade. Outros, como bem sabe a moça, infelizmente não passam, não.

10.1.07

fingindo espanto

Aquele professor me perseguiu a vida inteira. Dava aulas de matemática, logo matemática, e era um carrasco. Não sei como sobrevivi. Já crescida, dou de cara com ele na rua, carregando um vidrinho cheio de um líquido amarelo que ameaçava derramar. Ainda tentou disfarçar, mas não dei chance. Me adiantei, abri um baita sorriso e exclamei um que prazer, professor! O homem quase morreu. Não sabia onde se enfiar, ou melhor, não sabia onde enfiar o vidrinho. Sem piedade, estendi o braço. Ele teve que mudar o potinho de mão pra me cumprimentar. Como vinha cheio de livros, quase aconteceu uma tragédia. Recuei um pouco pra me proteger, mas deixei que se virasse. Tive um certo nojo de apertar aquela mão, mas o que a gente não faz por vingança? Depois do cumprimento, engatei uma conversa mole, disse que estava felicíssima por reencontrá-lo, que tínhamos muito o que relembrar e convidei-o para um café. Ele recusou, explicando que tinha outro compromisso. E eu, decepcionadíssima: mas, professor, o que pode ser mais importante do que falar sobre os velhos tempos? Ele, indicando o vidrinho com a cabeça: vc sabe. Não, não sei. Vc sabe. Continuei negando até ele ter que dizer: estou indo fazer um exame de urina. E eu, fingindo espanto: é seu xixi, professor? Não acredito que o senhor saiu pela rua exibindo isso assim! Falei, virei as costas e fui embora. Valeu por todos os zeros que ele me deu.

9.1.07

totalmente procedente

Processou e venceu a companhia de telefonia móvel por danos morais. A sentença:

"A autora relata na inicial que estava há dias aguardando um telefonema do rapaz com quem vinha saindo, tendo sua ansiedade chegado ao limite, quando recebeu uma mensagem da ré, empresa de telefonia móvel da qual é usuária. Certa de que se tratava do contato esperado, a autora disparou em direção ao celular. Ao verificar, contudo, que o texto continha apenas a lembrança de que a data do pagamento de sua conta se aproximava, a autora experimentou profunda frustação e dor. Relatou, ainda, que jamais deixou de quitar seu débito em dia, o que torna ainda mais absurda a atitude da ré, que distribui mensagens aleatoriamente, desconsiderando o efeito que possam causar nas destinatárias. Entende este Juízo que o uso de celulares é a maior conquista feminina da atualidade. Não é mais necessário permanecer horas ao lado do telefone, aguardando uma ligação. Os celulares garantem às mulheres livre movimentação durante a espera e são, principalmente por essa razão, cada vez mais utilizados por elas. É certo, no entanto, que a mobilidade alivia, mas não elimina a ansiedade feminina. É, com efeito, pública e notória a tensão que domina as mulheres enquanto não recebem a chamada desejada e a decepção que sentem ao atender outras. Embora ciente disso, a ré enviou a relatada mensagem, devendo ser responsabilizada por sua conduta leviana, que causou violentos danos morais à autora. Pelo exposto, julgo totalmente procedente o pedido autoral, condenando a ré ao pagamento de indenização no valor de R$500.000,00. Intimem-se as partes."

8.1.07

la tour

Mamãe não passa nem perto d0 parque aqui da rua, mas, lá em Paris, cismou de tomar café da manhã na praça. Entramos numa confeitaria, compramos comida pra um batalhão e rumamos pra pracinha mais próxima. Comi meu lanche todo enquanto mamãe lutava pra abrir o vinho. Gastou horas conferindo a safra, mas não se lembrou de providenciar um abridor. A rolha, teimosa, não saiu do lugar. Derrotada, mamãe resolveu guardar o vinho pra uma ocasião especial, a volta pra casa. No avião, mal se sentou, começou a beber. Não sei se foi a altitude, o álcool ou a combinação fatal, mas, com meia garrafa, convenceu-se de que era a Torre Eiffel em pessoa. Plantou-se no meio do corredor, com as pernas abertas e os braços unidos sobre a cabeça, num triângulo perfeito. Não houve quem a tirasse de lá. Na aterrissagem, teve que ser amparada por várias aeromoças. Nem com o aviso de apertar cintos voltou a seu lugar. Mamãe morre de medo de avião, mas a Torre Eiffel, pelo visto, não.

7.1.07

isolda

Essa cerveja nova vai ser um sucesso, não resta dúvida. Com meio copo, titia, em geral tão discreta, roubou o lugar do cantor e transformou o baile num karaokê de uma participante só. Atacou de roquinho, encarnou um papai noel extemporâneo, gritando ho ho ho sem parar entre uma música e outra, cismou de cantar uma tal de Isolda, que só muito depois entendeu-se que era compositora e não música, animou a festa. Essa cerveja é boa mesmo. Não é que as outras senhoras entraram na dança? Até mamãe encarou a cantoria, num dueto impagável com titia. Mamãe cantava que sim, titia respondia que não, never, never more. Quando o músico enfim recuperou seu posto, partiram as duas pra pista de dança. A pista não passava da varandinha do sítio, mas, com meio copo de cerveja, isso era detalhe. Titia ainda dança aos pulinhos, estilo anos 80, mamãe foi de twist e as outras senhoras, de salada mista. Titia só deixou a pista arrastada, agarrando-se ao microfone e ainda aos gritos de Isolda, Isolda! Mamãe tombou por lá mesmo e as outras mulheres foram saindo aos pouquinhos. Homem por ali não se viu. Não passou um único pela pista de dança. Parece que a tal cerveja vai ser um fracasso, isso sim. Só mexe com a mulherada.

6.1.07

o devido valor

A mulher, forte e dominadora, gritava suas ordens e infernizava a vida do marido. A mulher era a dona, da casa e dele. Era ela quem escolhia o que faziam, o que vestiam e no que pensavam. Quando o marido foi internado de emergência, no entanto, a mulher perdeu o chão. Sem ele em casa, não conseguia decidir o que jantar, que vestido botar, aonde ir. Sem ele, nem a novela conseguia ver. Que graça tem ver tv sem trocar de canal no meio do futebol? Sem o marido pra contrariar, ela não fazia nada, só esperava o dia passar. Quando o doente enfim saiu do hospital, a mulher virou um anjo. Cobriu o convalescente de tantos mimos que ele até agradecia pela operação. A mulher sentira sua falta e estava completamente mudada. De fato, a possibilidade de perder seu objeto de tortura ensinou-a a dar a ele o valor merecido. Fazia juras de amor eterno, paparicava sua presa noite e dia. Tão logo o marido saiu da cama, a mulher voltou a gritar.

4.1.07

até o fim

Moravam fora e, pra celebrar a visita da família, resolveram fazer uma travessura. Saíram do curso, correram pra casa, esguicharam uma na outra uns sprays coloridos e partiram pro almoço com os cabelos berrantemente tingidos de azul e vermelho. O irmão esperava na porta do restaurante. Desfilaram de um lado pro outro e ele, nada. Afinal, se identificaram. O irmão: tava aqui pensando quem eram essas malucas. Foi difícil enfrentar o restaurante ridículas daquela maneira, mas o pulo do pai na cadeira compensou o esforço. Não deu nem bom dia, foi direto perguntando se aquilo saía. Não. Pois só vou dizer uma coisa: está horrível. E não deu mais uma palavra. A mãe também detestou, mas, fazendo-se de moderninha, adotou um discurso do tipo tudo bem, se a gente não fizer essas coisas com essa idade, não faz mais, até que ficou bonitinho. A programação do dia era extensa, portanto os pais foram submetidos a um vexame e tanto. A mãe, lá pelas tantas, reparou que a tinta estava esfarelando. É porque estávamos atrasadas pro almoço e não tivemos tempo de enxaguar. Voltando ao hotel, a mãe cismou de lavar os cabelos das filhas, pra conferir o resultado. No que ligou o chuveirinho, a tinta começou a escorrer. Ué, minha filha, tá saindo tudo. Claro que não, mãe, é só o excesso. Tá saindo tudo, sim, olha aqui. Esse cabeleireiro é um ladrão. Amanhã nós vamos lá e ele vai ter que refazer a tintura. Então vc gostou, mãe? Achei horrível, mas ainda assim ele vai ter que refazer. Dispostas a ir até o fim, as filhas escolheram um salão bem longe de casa e partiram pra briga.

1.1.07

nunca mais quero ser enganada

De todos os programas que poderia ter escolhido neste réveillon, fiquei com o pior. Não me refiro ao pré-réveillon, que foi perfeito. Não é todo mundo que pega um ônibus nessa data e consegue um lugar pra se sentar confortavelmente. Não é todo mundo que ganha uma festa linda de presente. Não é, sobretudo, todo mundo que vira o ano com quem quer. Até meia-noite, portanto, não houve erro. À meia-noite, porém, não houve réveillon. Não que eu estivesse numa cidadezinha qualquer. Aliás, estou certa de que até na ruela mais estreita da cidade mais esquecida do país houve uma explosão de fogos. Pois no réveillon de Ipanema, o tal que este ano ia desbancar o de Copacabana, não. Passei o réveillon no coração do Rio e não vi fogo nenhum. No máximo, por trás do prédio grande que tapa toda a visão de Copacabana, dava pra ver a sombra dos fogos de lá. Tá certo, o show de Ipanema era melhor, segundo dizem, mas desde quando é isso que faz o réveillon? Show tem o ano inteiro. Réveillon na praia, só no ano que vem, e isso se eu passar no Rio. Se passar, uma coisa é certa. Não me venham com jornais e revistas dizendo que o quente agora é Ipanema, que Copacabana já era e tudo mais. Posso ter errado este ano, mas nunca mais vou ser enganada. Réveillon é em Copa.