31.1.07

plano perfeito

Ana resistiu o quanto pode, mas, vencida pela dor de barriga descomunal, teve que ir ao banheiro no shopping mesmo. De dentro da cabine, ia ouvindo as pessoas passando, as portas abrindo e fechando, dava pra sentir que a fila estava grande. Só se recuperou muito depois e deu vergonha de encarar a multidão. Preferiu continuar fechada, esperando o tumulto acabar. O barulho diminuiu, ela já ia pondo o pé pra fora da cabine, mas viu que a faxineira ainda estava por perto. Recuou, não ia ter coragem de enfrentar o olhar que certamente diria "eu sei há quanto tempo vc está aí, que horror!". Ficou escondida enquanto a mulher cantarolava do lado de fora, esfregando o pano no chão. Quando a cantoria acabou, saiu. Saiu e descobriu que estava trancada no banheiro do shopping. Nem se importou. O banheiro era ótimo, tinha até um sofazinho, e o ar-condicionado continuava ligado. Resolveu aproveitar pra experimentar as compras do dia, se admirando por todos os lados nos imensos espelhos. Bem mais divertido do que no espelhinho de casa, com o marido reclamando da luz acesa. Quando se cansasse, era só ligar e pedir socorro. Viva o celular, Ana pensou, já espalhando as sacolas. Umas duas horas depois, teve um momento de pânico ao remexer a enorme bolsa e não encontrar o telefone, mas ele estava lá. Capinha vermelha, pingente de ursinho, foto da filha no visor e duas palavrinhas de arrasar qualquer quarteirão: sem serviço.

30.1.07

escondidinhos

O filho não suportava o cigarro da mãe. Reclamava tanto que ela passou a fumar escondida. Pra escapar da vigilância estreita, foi desenvolvendo topo tipo de estratégia. Guardava o maço debaixo do colchão e deixava sempre um cigarro atrás de um azulejo na cozinha, especialmente arrancado pra virar esconderijo. Inventou uma superstição e só saía pela porta dos fundos, depois de recuperar discretamente o tesouro. Combinou um valor fixo com o filho da vizinha pra que ele, algumas vezes por semana, viesse pedir sua ajuda com a mãe alcóolatra, que de álcool nunca tinha provado uma gota. Quando não havia outro jeito e a vontade apertava, se trancava no quarto e fumava por lá mesmo. Antes de sair, acendia um incenso e bebia umas gotinhas de perfume pra não deixar rastros. Julgava-se muito esperta, mas o filho percebia o golpe. Continuou reclamando do cigarro e, agora, do incenso, que também detestava. Um dia, porém, começou a queimar ele também um incensinho. Aprendeu a gostar do cheiro, pensava a mãe, sem reparar na cara de tonto e nos olhos vermelhos do garoto. Caía no próprio truque.

29.1.07

por um triz

Todo fim de tarde tem revista na fazenda. Os primos, perfilados na varanda, vão se apresentando um a um pra tia catar carrapatos. A tarefa é cumprida com rigor militar. Nem os carrapatinhos escondidos nos lugares mais inconvenientes escapam. Alguns recrutas suportam bem a provação. Outros quase morrem, mas com a tia não adianta choradeira. A Susana é uma que vive tentando escapulir. Num dia de especial agonia, chegou a jurar que gostava de ficar toda mordida, inventou que aquele carrapatão enorme na verdade era uma pinta, fingiu que ia desmaiar, fez de tudo. A tia não se comoveu, continuou numa luta de vida ou morte com o bicho. Todo mundo ficou por ali, acompanhando a batalha sangrenta. Quando já estava tudo por uma pata, com a vitória da tia mais do que certa, ela capitulou. Era mesmo uma pinta.

26.1.07

nomes feios

O assaltante joga a velhinha no chão e arranca seu colar com brutalidade. A filha grita feito louca, xinga o homem dos piores palavrões, dá um show. Já a velhinha se levanta com classe e diz que está tudo bem. Como tudo bem, mãe? Era seu melhor colar. Vc não ficou triste? E a velhinha: Fiquei mais de descobrir que vc sabia todos esses nomes feios, minha filha.

25.1.07

beija-flor

É enorme de gordo, mas nem pensa em fazer regime. Ao contrário, esforça-se pra comer cada vez mais. Quando pequeno, era impedido pela mãe de deixar comida no prato. Tem gente morrendo de fome, ela dizia, vc tem que comer tudo. No começo, não entendia como sua comilança mataria a fome alheia. Com o tempo, convenceu-se de que o que comia alimentava diretamente os famintos do mundo. Passou a comer mais e mais, mesmo sem vontade, certo de que assim não sobraria ninguém com fome. Já crescidinho, quase morreu de decepção ao descobrir que, apesar de seus esforços, tinha era gente morrendo faminta por aí. Por causa do baque, passou uns dois dias de cama, se recusando a comer, mas afinal pensou no jejum que estava impondo a milhares de pessoas e reagiu. Decidiu redobrar os esforços e vem dedicando a vida a uma comilança sem fim. Sabe que não vai acabar com a fome mundial, mas insiste. Como um imenso beija-flor, faz sua parte.

24.1.07

brinca direito, seu guarda

Eu e titia fomos paradas no alto do viaduto. Duas moças bonitas, sabe como é. O guardinha, muito gentil, pede os documentos do carro. Sem problemas, titia responde. Não tivesse ela trocado de bolsa e esquecido a carteira na outra, realmente não haveria problema algum. Como esqueceu, o guardinha anunciou que ia apreender o carro. Titia se desesperou. Fez um drama, até chorou. Exagero dela. Podímos ter sido assaltadas, pensa só. Muito pior. Ali, pelo menos, era a polícia amiga. O guardinha voltou pro próprio carro e de lá fez sinal chamando a titia. Ela ficou um tempo conversando com ele, depois veio me pedir dez reais. Não entendi o que pretendia com aquele dinheiro, mas ela estava tão nervosa que nem perguntei. Como tinha um ponto de jogo do bicho na subida do viaduto, imaginei que fosse fazer uma fezinha antes de partirmos pro depósito. Dali a pouco, volta ela: tudo resolvido, o cara aceitou os dez reais. Honestamente, não tinha me passado pela cabeça que titia fosse tentar subornar o policial com aquele valor. Fiquei orgulhosa da audácia dela. Não que eu concorde com o suborno, mas, convenhamos, foi um recorde. Além diso, reconheço que a situação era mesmo enrolada. A perspectiva de seguir pro depósito ou ficar a pé ali no alto àquela hora da noite realmente era dramática. Pra piorar, a titia ia precisar de um dinheiro que não tinha pra resgatar o carro. Enfim, não aprovo, mas compreendo o lado dela. Agora, que um policial se deixe subornar por dez reais, tendo milhares de carros dispostos a pagar muito mais, francamente, não dá pra admitir. Nesse ritmo, daqui a pouco a cervejinha não vai dar nem pra água mineral.

22.1.07

o nome da minha mãe

Antes de inventar o nome da minha mãe, Vovó queria que ela se chamasse Gloxínia. Mudou de idéia porque misturou o próprio nome com o do meu avô e adorou o resultado. Mamãe detesta. Se o nome é bonito ou não, nem vou discutir. Sendo da minha mãe, é obviamente o mais lindo do mundo. Agora, que tem problemas sérios de gênero e tonicidade, lá isso tem. No telefone, todos querem falar com o senhor fulano. Não tem erro, ninguém considera a hipótese do fulano ser fulana. Olho no olho é pior ainda. O nome da mamãe é oxítono, mas o mundo está convencido de que é proparoxítono. Mais ou menos assim: me chamo Oxítona. Proparoxítona? Não, caramba, Oxítona, Oxítona, tenho vontade de gritar, mas mamãe já nem liga. Outro problema do nome é que ele faz a mamãe mentir. Ela vive contando que um admirador pintou o nome numa pedra por causa dela. A pintura até que é verdade, a foto comprova, mas dizer que foi pra ela? Também adora falar que é dela a música argentina que ganhou um certo festival. Tudo bem que antes de cantar o músico, todo apaixonado, explica que aquilo em português é o nome de uma garota. Tá no disco, é só ouvir, mas dizer que foi pra ela? Mamãe ainda jura que conheceu a Carmem Miranda e ela se encantou com aquele nome tão diferente, tão proparoxítono. Prova, ela não tem, mas fica a palavra dela contra a da Carmem, que certamente sacode todos os balangandãs no túmulo quando ouve a mentirinha. Mamãe não está nem aí. Mente que é uma beleza e nem se preocupa com o mau exemplo. Deve achar que é privilégio de quem não se chama Maria.

20.1.07

aposta

Os cinemas de hoje, apertados e idênticos, não são de nada. O Ópera é que era bom. Enorme, com poltronas que corriam pra trás e não pra cima e tela que guardava uma distância respeitosa da gente. Foi onde eu vi e revi montes de filmes. O São Luiz e o Largo do Machado também eram sensacionais. Não sabia e ainda não sei qual era qual. Sei que um ficava dentro da galeria e era um pouco menor, mas ainda assim imenso. O outro, que ao ser retalhado em quatro me causou uma das maiores dores da vida, era gigantesco. A gente podia ir ver qualquer estréia lá sem medo, sempre sobrava ingresso. Tinha também o pornô da São Clemente. Esse eu não sei se era grande, mas era maravilhoso. O letreiro exibia sem pudor os títulos em cartaz, todos extremamente lúdicos. "Pintos voadores encontram vaginas descontroladas" numa semana, " A volta das enfermeiras suculentas" na seguinte. Cinema era a maior diversão. Pra completar, o pornô da praia, meu favorito. O letreiro sempre foi o mesmo: Dois Filmes de Sexo Explícito. Mesmo sabendo de cor, nunca deixei de ler. O Dois Filmes de Sexo Explícito foi um dos grandes responsáveis pelo meu equilíbrio emocional na infância. A qualquer dia ou hora, tava lá: Dois Filmes de Sexo Explícito. Nunca mudava. Isso dá segurança à criança. Um dia, o Dois Filmes fechou. Me desestruturei, acabei na terapia. Se o Dois Filmes de Sexo Explícito tinha acabado, tudo podia acabar. Quando eu procurasse, não ia ter casa, pai, escola. Foi um período difícil. A responsável pela tragédia, soube depois, foi titia, que sussurou no ouvido do prefeito que cinema pornô perto de colégio era um perigo. Não é verdade, aquele cinema sempre foi meu amigo. Ele e os outros todos de quando eu era pequena. Os cinemas de hoje não se deixam envolver, não fazem amizade, são uns insensíveis. Ninguém vai sentir a falta deles. Aposto.

18.1.07

vovó e pompéia

Cresci ouvindo Vovó falar de Pompéia. Que era incrível, que foi descoberta por um fulano que dedicou a vida a isso, que tudo que queria era ir a Pompéia. Quando fui à Itália, não me importei com o desvio, fiz questão de visitar as ruínas. Achei realmente sensacional e decidi voltar com Vovó. Fomos, um tempo depois. Vovó não se continha de tanta empolgação. Mal chegamos, tudo mudou. Ela fechou a cara e resolveu voltar pra Roma com meia hora de passeio. Mas por quê, Vovó? Muito triste pensar que tantas pessoas foram assassinadas por aquele vulcão horroroso. Aliás, e se ele resolve entrar em atividade? Vamos embora logo. Achei melhor nem discutir. Se ela visse os moldes em gesso dos corpos das vítimas, era capaz de entrar em choque. Admito que a reação da Vovó foi bem razoável, afinal o que aconteceu foi mesmo uma tragédia. O que continuo me perguntando, no entanto, é se foi só lá que Vovó descobriu o que malvado do Vesúvio aprontou com Pompéia.

17.1.07

veraneio

A queda do meu primo da Veraneio foi incrível. A Veraneio era o carro da Vovó. Tinha um formato engraçado e era de um dourado que não se vê mais. Não há equivalente hoje em dia. Normalmente, viajávamos os primos no Fiat da titia. Era um horror. Não que o Fiat fosse ruim. Naquela época, era até um carrão, mas nós cinco tínhamos que nos apertar atrás e um sempre ia sentado na pontinha do banco porque não dava pra todo mundo encostar. Já a viagem na Veraneio era ótima. Sobrava espaço e a Vovó ainda ia da frente jogando uns peixinhos de chocolate que infelizmente entraram em extinção. Só era chato quando a gente ia com a titia. Não a do Fiat, outra. Aí o Ricardo, como estava com a mãe, reclamava sem parar e trocava de lugar a toda hora. Numa dessas, acabou abrindo a porta e caindo numa curva. A titia virou pra trás bem na hora e o agarrou pelo braço em plena queda. Até hoje não entendo como ela fez. Ricardo caiu do carro, mas não chegou a cair na estrada. Foi arrastado por alguns metros e o pneu da Veraneio passou por cima do pé dele, fazendo feridas geométricas nos dedinhos, mas não quebrou nada. Depois disso, meu primo virou mesmo um rei. Queria ir deitado no banco, com a perna esticada, e nós que nos empilhássemos uns sobre os outros no cantinho que sobrava. Tanto fez que cansou a paciência da titia e teve que enfrentar a outra metade da viagem sentado no chão da Veraneio. Com a perninha esticada, do jeito que queria.

16.1.07

prazeres rasos

Perdeu a mulher e entrou num luto fechado. Comia, dormia, não fazia mais do que o necessário. Cortou tudo que era prazer. Com o tempo, passou a beber uma cachacinha no final do dia. Mais um pouco, comprou um balanço, que instalou na varanda. Ficava lá, bebendo e se balançando, mas continuou vestindo preto. Aos que perguntavam, explicava que o luto estava mantido porque a viuvez acabara com sua alegria. Mas e a cachacinha, Samuel, e o balanço? Prazeres rasos, respondia, prazeres rasos não contam. Acabou acrescentando uma vitrolinha à cachaça no balanço. Quando a música animava, até arriscava uns passinhos pela varanda. Aos que estranhavam a valsa enlutada, a mesma resposta: prazeres rasos, prazeres rasos. Começou a juntar gente pra aproveitar a vitrola, novidade no local, e a dança solitária virou baile. Toda noite tinha, entrava pela madrugada e só acabava no dia seguinte. Samuel, cada vez mais empolgado, passava a tarde preparando a festança de logo mais. Os prazeres rasos se tornaram profundos, mas nem assim ele desistiu do luto. Quando alguém criticava, dizia que era um pobre viúvo, vivendo ainda sua dor. Mas e as festas, a bebedeira? Prazeres rasos, prazeres rasos, insistia, sem se dar conta da mudança.

15.1.07

draminha

A menina conta que largou as aulas de equitação. A amiguinha pergunta a razão e ela diz que os donos dos cavalos se separaram. A amiguinha não entende a relação. A menina explica que o cavalo é da moça e a égua do moço. Ela gosta da moça e da égua. Com a separação, ficou a pé. A amiguinha quer saber se a menina ficou triste. Fiquei, ela responde, mas é assim mesmo, separação é sempre um drama.

14.1.07

conference call

O senhor, aflito, telefona para avisar que minha avó está passando mal. Posso falar com ela, senhor? Não, ela não está em condições de falar. Tudo bem, estou indo aí. Qual o nome da rua? Não sei. É só ler a placa, senhor. É que daqui não dá pra ler. Pergunte a um passante, então. É que não tem ninguém aqui. Antes que eu dissesse mais alguma coisa, perdeu a paciência e desligou. Lamentei não ter agradecido o amparo a vovó numa rua deserta e sem nome, mas pra minha sorte ele ligou de novo em seguida. Dessa vez, socorrendo titio. Mamãe atendeu e mostrou-se preocupadíssima com o irmão que nunca teve. Quis falar com ele, saber onde estava, tudo mais. O gentil senhor, com toda razão, novamente se impacientou e, aos berros, anunciou o sequestro. Disse que ia picar, cozinhar, fazer todo tipo de delírio gastronômico com titio se não recebesse o resgate. Do meu lugar dava pra ouvir o que dizia e fiquei bastante preocupada. Tendo ou não tio, é sempre assustador saber que a vida dele está entre um ensopado e um estrogonofe. Mamãe também se apavorou. Gritou e implorou pelo irmão até começar a escorregar da cadeira e se espatifar, revirando os olhinhos. Ela para um lado, o telefone para o outro. Não entendi na hora por que mamãe tinha jogado nosso telefone novinho no chão, mas soube depois que era para o senhor ouvir o barulho e perceber que ela estava mesmo tendo um ataque. O que pretendia estatelada no chão, no entanto, nunca compreendi, já que não estávamos numa conference call. Mas que diferença isso faz quando se tem uma avó e um tio sequestrados e uma mãe infartada?

12.1.07

selton

O Selton Mello não sabe, mas me persegue. Mamãe o conheceu numa festa na casa da titia. Não sei o que ele fez, mas ela se encantou. Veio me perguntar, toda animada: minha filha, por que vc não namora o Selton Mello? Assim, como quem oferece um sorvete. A empolgação só diminuiu quando eu lembrei que já tinha namorado. Mamãe gostava do moço, então pôs o Selton de lado. Quando o namoro acabou, anos depois, voltou à carga. Ótimo, minha filha, agora vc já pode namorar o Selton Mello. Fique claro que mamãe não está procurando um genro desesperadamente, nem tem fascínio especial por artistas. O Selton é que fez mesmo algum feitiço com ela. Nem adianta eu dizer que, Mello por Mello, prefiro o Danton. Mamãe quer porque quer o Selton. Um dia, demos de cara com ele na rua. Saí correndo, antes que ela mandasse um: Selton! Lembra de mim? Deixa eu te apresentar minha filha, perfeita pra vc. Minha última cartada foi mostrar uma revista com uma chamada escandalosa: Selton Mello confessa que é galinha mesmo. Casar, nem pensar. Exultei. Mamãe não ia querer filha solteira. Tive certeza de que era o fim, mas ela fez pouco caso. Isso é coisa da imprensa, minha filha, não liga, não. O Selton agora vai participar do novo filme da titia. Mamãe ainda não soube, mas é questão de tempo. Ele que se prepare.

11.1.07

morta de medos

A moça dorme sozinha e quase morre de medos. Medo tem de vários tipos e ela conhece todos. Tem o medo insano, daquela coisa que não existe, nem está lá, mas assusta mesmo assim. O medo sensato, do ladrão que pode realmente estar do outro lado da porta. Tem o medo clássico, do escuro. O medo que ataca no meio da madrugada, tipo fome. O medo óbvio, efeito colateral de filme de terror tarde da noite. O medo de fantasma, que só existe na sua imaginação. Tem um medo brincalhão, o de barulho de passos que se aproximam, mas não chegam nunca. O medo frágil, que se mata só de acender a luz. Tem uns medos infantis, que passam com a idade. Outros, como bem sabe a moça, infelizmente não passam, não.

10.1.07

fingindo espanto

Aquele professor me perseguiu a vida inteira. Dava aulas de matemática, logo matemática, e era um carrasco. Não sei como sobrevivi. Já crescida, dou de cara com ele na rua, carregando um vidrinho cheio de um líquido amarelo que ameaçava derramar. Ainda tentou disfarçar, mas não dei chance. Me adiantei, abri um baita sorriso e exclamei um que prazer, professor! O homem quase morreu. Não sabia onde se enfiar, ou melhor, não sabia onde enfiar o vidrinho. Sem piedade, estendi o braço. Ele teve que mudar o potinho de mão pra me cumprimentar. Como vinha cheio de livros, quase aconteceu uma tragédia. Recuei um pouco pra me proteger, mas deixei que se virasse. Tive um certo nojo de apertar aquela mão, mas o que a gente não faz por vingança? Depois do cumprimento, engatei uma conversa mole, disse que estava felicíssima por reencontrá-lo, que tínhamos muito o que relembrar e convidei-o para um café. Ele recusou, explicando que tinha outro compromisso. E eu, decepcionadíssima: mas, professor, o que pode ser mais importante do que falar sobre os velhos tempos? Ele, indicando o vidrinho com a cabeça: vc sabe. Não, não sei. Vc sabe. Continuei negando até ele ter que dizer: estou indo fazer um exame de urina. E eu, fingindo espanto: é seu xixi, professor? Não acredito que o senhor saiu pela rua exibindo isso assim! Falei, virei as costas e fui embora. Valeu por todos os zeros que ele me deu.

9.1.07

totalmente procedente

Processou e venceu a companhia de telefonia móvel por danos morais. A sentença:

"A autora relata na inicial que estava há dias aguardando um telefonema do rapaz com quem vinha saindo, tendo sua ansiedade chegado ao limite, quando recebeu uma mensagem da ré, empresa de telefonia móvel da qual é usuária. Certa de que se tratava do contato esperado, a autora disparou em direção ao celular. Ao verificar, contudo, que o texto continha apenas a lembrança de que a data do pagamento de sua conta se aproximava, a autora experimentou profunda frustação e dor. Relatou, ainda, que jamais deixou de quitar seu débito em dia, o que torna ainda mais absurda a atitude da ré, que distribui mensagens aleatoriamente, desconsiderando o efeito que possam causar nas destinatárias. Entende este Juízo que o uso de celulares é a maior conquista feminina da atualidade. Não é mais necessário permanecer horas ao lado do telefone, aguardando uma ligação. Os celulares garantem às mulheres livre movimentação durante a espera e são, principalmente por essa razão, cada vez mais utilizados por elas. É certo, no entanto, que a mobilidade alivia, mas não elimina a ansiedade feminina. É, com efeito, pública e notória a tensão que domina as mulheres enquanto não recebem a chamada desejada e a decepção que sentem ao atender outras. Embora ciente disso, a ré enviou a relatada mensagem, devendo ser responsabilizada por sua conduta leviana, que causou violentos danos morais à autora. Pelo exposto, julgo totalmente procedente o pedido autoral, condenando a ré ao pagamento de indenização no valor de R$500.000,00. Intimem-se as partes."

8.1.07

la tour

Mamãe não passa nem perto d0 parque aqui da rua, mas, lá em Paris, cismou de tomar café da manhã na praça. Entramos numa confeitaria, compramos comida pra um batalhão e rumamos pra pracinha mais próxima. Comi meu lanche todo enquanto mamãe lutava pra abrir o vinho. Gastou horas conferindo a safra, mas não se lembrou de providenciar um abridor. A rolha, teimosa, não saiu do lugar. Derrotada, mamãe resolveu guardar o vinho pra uma ocasião especial, a volta pra casa. No avião, mal se sentou, começou a beber. Não sei se foi a altitude, o álcool ou a combinação fatal, mas, com meia garrafa, convenceu-se de que era a Torre Eiffel em pessoa. Plantou-se no meio do corredor, com as pernas abertas e os braços unidos sobre a cabeça, num triângulo perfeito. Não houve quem a tirasse de lá. Na aterrissagem, teve que ser amparada por várias aeromoças. Nem com o aviso de apertar cintos voltou a seu lugar. Mamãe morre de medo de avião, mas a Torre Eiffel, pelo visto, não.

7.1.07

isolda

Essa cerveja nova vai ser um sucesso, não resta dúvida. Com meio copo, titia, em geral tão discreta, roubou o lugar do cantor e transformou o baile num karaokê de uma participante só. Atacou de roquinho, encarnou um papai noel extemporâneo, gritando ho ho ho sem parar entre uma música e outra, cismou de cantar uma tal de Isolda, que só muito depois entendeu-se que era compositora e não música, animou a festa. Essa cerveja é boa mesmo. Não é que as outras senhoras entraram na dança? Até mamãe encarou a cantoria, num dueto impagável com titia. Mamãe cantava que sim, titia respondia que não, never, never more. Quando o músico enfim recuperou seu posto, partiram as duas pra pista de dança. A pista não passava da varandinha do sítio, mas, com meio copo de cerveja, isso era detalhe. Titia ainda dança aos pulinhos, estilo anos 80, mamãe foi de twist e as outras senhoras, de salada mista. Titia só deixou a pista arrastada, agarrando-se ao microfone e ainda aos gritos de Isolda, Isolda! Mamãe tombou por lá mesmo e as outras mulheres foram saindo aos pouquinhos. Homem por ali não se viu. Não passou um único pela pista de dança. Parece que a tal cerveja vai ser um fracasso, isso sim. Só mexe com a mulherada.

6.1.07

o devido valor

A mulher, forte e dominadora, gritava suas ordens e infernizava a vida do marido. A mulher era a dona, da casa e dele. Era ela quem escolhia o que faziam, o que vestiam e no que pensavam. Quando o marido foi internado de emergência, no entanto, a mulher perdeu o chão. Sem ele em casa, não conseguia decidir o que jantar, que vestido botar, aonde ir. Sem ele, nem a novela conseguia ver. Que graça tem ver tv sem trocar de canal no meio do futebol? Sem o marido pra contrariar, ela não fazia nada, só esperava o dia passar. Quando o doente enfim saiu do hospital, a mulher virou um anjo. Cobriu o convalescente de tantos mimos que ele até agradecia pela operação. A mulher sentira sua falta e estava completamente mudada. De fato, a possibilidade de perder seu objeto de tortura ensinou-a a dar a ele o valor merecido. Fazia juras de amor eterno, paparicava sua presa noite e dia. Tão logo o marido saiu da cama, a mulher voltou a gritar.

4.1.07

até o fim

Moravam fora e, pra celebrar a visita da família, resolveram fazer uma travessura. Saíram do curso, correram pra casa, esguicharam uma na outra uns sprays coloridos e partiram pro almoço com os cabelos berrantemente tingidos de azul e vermelho. O irmão esperava na porta do restaurante. Desfilaram de um lado pro outro e ele, nada. Afinal, se identificaram. O irmão: tava aqui pensando quem eram essas malucas. Foi difícil enfrentar o restaurante ridículas daquela maneira, mas o pulo do pai na cadeira compensou o esforço. Não deu nem bom dia, foi direto perguntando se aquilo saía. Não. Pois só vou dizer uma coisa: está horrível. E não deu mais uma palavra. A mãe também detestou, mas, fazendo-se de moderninha, adotou um discurso do tipo tudo bem, se a gente não fizer essas coisas com essa idade, não faz mais, até que ficou bonitinho. A programação do dia era extensa, portanto os pais foram submetidos a um vexame e tanto. A mãe, lá pelas tantas, reparou que a tinta estava esfarelando. É porque estávamos atrasadas pro almoço e não tivemos tempo de enxaguar. Voltando ao hotel, a mãe cismou de lavar os cabelos das filhas, pra conferir o resultado. No que ligou o chuveirinho, a tinta começou a escorrer. Ué, minha filha, tá saindo tudo. Claro que não, mãe, é só o excesso. Tá saindo tudo, sim, olha aqui. Esse cabeleireiro é um ladrão. Amanhã nós vamos lá e ele vai ter que refazer a tintura. Então vc gostou, mãe? Achei horrível, mas ainda assim ele vai ter que refazer. Dispostas a ir até o fim, as filhas escolheram um salão bem longe de casa e partiram pra briga.

1.1.07

nunca mais quero ser enganada

De todos os programas que poderia ter escolhido neste réveillon, fiquei com o pior. Não me refiro ao pré-réveillon, que foi perfeito. Não é todo mundo que pega um ônibus nessa data e consegue um lugar pra se sentar confortavelmente. Não é todo mundo que ganha uma festa linda de presente. Não é, sobretudo, todo mundo que vira o ano com quem quer. Até meia-noite, portanto, não houve erro. À meia-noite, porém, não houve réveillon. Não que eu estivesse numa cidadezinha qualquer. Aliás, estou certa de que até na ruela mais estreita da cidade mais esquecida do país houve uma explosão de fogos. Pois no réveillon de Ipanema, o tal que este ano ia desbancar o de Copacabana, não. Passei o réveillon no coração do Rio e não vi fogo nenhum. No máximo, por trás do prédio grande que tapa toda a visão de Copacabana, dava pra ver a sombra dos fogos de lá. Tá certo, o show de Ipanema era melhor, segundo dizem, mas desde quando é isso que faz o réveillon? Show tem o ano inteiro. Réveillon na praia, só no ano que vem, e isso se eu passar no Rio. Se passar, uma coisa é certa. Não me venham com jornais e revistas dizendo que o quente agora é Ipanema, que Copacabana já era e tudo mais. Posso ter errado este ano, mas nunca mais vou ser enganada. Réveillon é em Copa.