24.12.16

à nostalgia futura

Dá até preguiça de falar que Natal é tempo de nostalgia e melancolia. Parece que é o que mais e mais gente sente e diz. E com razão. Não tem mesmo como deixar de sentir falta daqueles Natais passados, da casa da avó cheia de gente, daquela multidão que juntava família enorme, amigos e agregados, da maratona que era a festa, passando por amigo oculto, jogral, Papai Noel, tudo em ritmo acelerado, até, ufa, chegar no jantar, na mesa imensa coberta de delícias, na hora de relaxar e aproveitar a companhia uns dos outros até todo mundo ir embora, que Papai Noel só deixava presente no sapatinho de quem dormisse em casa. Enfim, não dá mesmo pra não sentir falta daqueles Natais. Mas a saudade, como a vida, anda pra frente. No futuro, é dos Natais de hoje que sentiremos falta. Destes Natais sem tradição, sem casa certa pra acontecer, de famílias pequenas, de tanta gente faltando, destes Natais em que a maratona não é pra cumprir todas as etapas da festa, mas pra comprar presentes pra quem nem importa, só por obrigação, só pra chegar na grande noite e aí, o quê? Nada. Falta alegria, falta sentido, nem parece que é Natal. Ainda assim, no futuro, estes serão os melhores Natais. Porque a nostalgia, muito esperta, vai trocando saudades antigas por novas e guarda só o que é bom.  Os Natais de hoje, sejam felizes ou não, serão lindos lá na frente. Por isso, mais do que com bolas e luzes, enfeitemos desde já este Natal com a beleza e a saudade que virão do futuro.

26.11.16

Fidel Noel

Fidel morreu. Pensei em escrever sobre Fidel, mas me lembrei de Papai Noel e o texto desandou. A associação é inevitável. Os dois têm barbas brancas, os dois vivem em terras longínquas e fantasiosas, os dois andam magrelos, Fidel por lamentável doença, Papai Noel porque a coisa tá feia e os modelos mais gordos e bochechudos são caros e cada vez mais raros. Os dois quase não falam, se bem que Papai Noel nunca passou de hohoho, já Fidel, enquanto pôde, torturou os ouvidos do povo por horas e horas, anos e anos, décadas e décadas. Os ouvidos y otras cositas más.
Agora, a coincidência final uniu os dois ainda mais. Fidel se foi quando Papai Noel vem chegando. Fidel se foi enquanto Papai Noel e os duendes embrulhavam presentes, e capitalistas do mundo inteiro corriam pras lojas pra comprar o que podiam e o que não podiam. As coincidências acabam aí. Pra Papai Noel, o Natal vai ser o de sempre, sempre novo, sempre igual. Pra Fidel, evidentemente vai ser muito diferente, talvez azul, cheio de nuvens e anjos, talvez vermelho e quente, cheio de diabinhos, vai saber. Pros inimigos da revolução, não muda nada. Pro pessoal lá da ilha, não sei se o Natal muda muito, não sei se vai ter Papai Noel, mas é certo que não vai ter bicho papão. Fidel morreu. Papai Noel vive. Tchau, Fidel. Vem, Papai Noel.

12.11.16

insônia

Na insônia, passeio pela minha fazenda. É raro ter, insônia. Quando tenho, não sei bem o que faço dela. Já sei que não adianta a agonia, já sei que às vezes é melhor levantar e ler até o sol raiar, esperando que cedo ou tarde o cansaço me vença. Isso depois de ter tentado o relaxamento, que começa das pontas dos dedos e vai subindo pelo corpo, e geralmente na altura das coxas já me faz dormir. Assim vinha levando a insônsia, até ter o estalo de gênio. Vou passear pela minha fazenda. Vou refazer o caminho que eu fiz tantas vezes, que sempre quis gravar e só gravei quando estive lá pela última vez, sabendo que ia ser a última vez. Gravei no vídeo e, hoje sei, na alma. Comecei antes de virar na placa, passei pela figueira, dei uns passos e parei. Fui girando e gravando o que via pelos lados, pelas costas, depois andei mais, parei, girei de novo. O cenário variava pouco, mas os ângulos iam mudando, formavam quadros, formavam fotos diferentes. Fui em silêncio, ouvindo os barulhos, gravando meus passos, vendo os bichos, passando pelo curral, chegando no bambuzal, nas cocheiras, na praça, parando e girando. O cenário aí já era outro, a lagoa na frente, mais cocheiras e pastos, a subida pra casa, a placa lá embaixo, lá no fundo, e o caminho já percorrido. Passo pela outra placa, pelo riachinho seco, as flores dos dois lados, a cerca gasta, as pedras, o jardim, orgulho da vovó, o jardim. Dali, de novo a lagoa, o pasto, a entrada de casa. Não chego a entrar, durmo antes. A sala e os quartos visito só no dia seguinte, quando acordo. É bom ter insônia. Na insônia, passeio pela minha fazenda.

25.2.16

satisfação

Cheguei perto com cuidado, olhei o corpo e as patas à procura das tais listrinhas. Nada. Ainda assim, como não sou boa de vista, tenho instinto sanguinário e detesto picadas de modo geral, não ia desperdiçar a oportunidade. É hoje pensei, é hoje que acabo com ele. Há dias eu o procurava, mas o desgraçado fugia, sumia, se camuflava, me deixava com cara de idiota no meio da sala, vasculhando todos os cantos à toa. E agora lá estava ele, vítima indefesa, pregado bem no meio da parede branca. Mesmo assim, era preciso agir com cautela. São espertos, os da raça dele, um deslize e já era. Planejei o ataque com pressa, sem tirar o olho dele. É preciso usar um objeto grande e firme e dar um golpe rápido e forte, me lembrei do namorado, caçador de mosquitos experiente e bem-sucedido. Mas eu estava no trabalho, sem um jornal, sem um objeto que se encaixasse nas especificações. E mais, sendo a sala toda de madeira escura, se perdesse a chance sabe-se lá quando ia ter outra. Parti pra cima com o que tinha: dois guardanapos usados pra comer um sanduíche. Pequenos, molengos, mas guerra é guerra. Falhei, claro. O bicho saiu voando, rindo da minha cara. Ah, mas o sangue me subiu à cabeça. Não vai ficar assim, não, infeliz. Se não foi com os guardanapos, vai ser com as mãos mesmo. Sou boa nisso até, volta e meia acerto.  Saí rodopiando pela sala, batendo palmas sem parar, acompanhando o voo frenético do mosquito. Mosquito burro, pousou de novo. Pensou que estivesse livre do perigo, né? Ledo engano. Ou vai ver ele estava só brincando comigo, confiante e abusado como os mosquitos geralmente são. O grau de dificuldade havia subido, ele agora estava estacionado em uma lâmina fininha de uma persiana de alumínio, que ainda por cima oscilava por conta da proximidade com o ar-condicionado. Só um golpe muito ninja mesmo daria conta daquilo. Foquei, respirei, era tudo ou nada, tipo final olímpica. Bati a palma mais forte, mais concentrada que consegui. Medalha de ouro. Cortei o dedo, mas valeu. O Brasil pode estar perdendo a guerra pro aedes, mas comigo não tem disso, não. Matei.