29.11.06

inclussível

Mandava uma orquídea toda semana e nunca assinava o cartão. A vizinha recebia a flor, enfeitava a casa, ria do bilhetinho e fingia não saber quem era o admirador. Não haveria mesmo como adivinhar se ele não tivesse uma marca registrada. O textinho variava, mas nunca faltava a palavra preferida do vizinho: inclussível. Aquele inclussível não deixava dúvidas. No cartão: amo vc, inclussível quero me casar. Na portaria: posso acompanhá-la ao supermercado, inclussível carregar suas compras. O admirador nem desconfiava, julgava-se absolutamente secreto. Por precaução, ainda levava uma orquídea pra vizinha sempre que a encomendada chegava. Só pra despistar ainda mais. Plano perfeito, não fosse o inclussível.

28.11.06

só de chinelos

Mantinha o cabelo ligeiramente comprido atrás (não vou chamar de mullets) e a pele super bronzeada. Só viajava de terno e gravata. Mesmo pra pegar a ponte aérea, no domingo de manhã, vestia o uniforme. Em viagem internacional, nem se fala, só usava terno do Alberto. Chegando a Paris, certa vez, foi logo cercado por distintos funcionários do aeroporto e levado a uma salinha reservada. É o terno, pensou, funciona mesmo. Engataram uma conversa sem fim. Um pouco cansativa, é verdade, mas nada que a cordialidade francesa não compensasse. Até a roupa ele tirou, a pedido dos simpáticos anfitriões. Não sabia que na França os vips ficavam pelados ao entrar no país, mas achou o ritual divertido. Oito horas depois, já um pouco impaciente, descobriu que estava era preso, confundido com um traficante mexicano. Quando liberado, foi direto ao barbeiro. Usa agora o cabelo curtinho, a pele bem branca e só viaja de chinelos. No máximo, vai ser confundido com um pé-rapado qualquer, o que não dá mais do que meia hora de detenção.

27.11.06

veados e caranguejos

Os dois partidos políticos dividem a cidade ao meio. A elite é toda veado. O povão, caranguejo. A vitória dos veados foi esmagadora e a tradicional família passou o dia celebrando. A empregada, amargando a derrota, serviu o jantar. Veados celebrando. Trouxe a sobremesa, veados ainda celebrando. Tirou a mesa e a festa continuava. Lá pelas tantas, alguém pergunta: e vc, Maria, é veado ou caranguejo? E ela, com um fiapo de voz: veado, ué.

26.11.06

vale cada centavo

Visitando o banheiro sem a companhia de um livro ou revista, Orlando resolveu matar o tempo lendo os rótulos dos produtos de beleza da irmã. Já tinha conferido a bandejinha quase toda quando bateu com o olho no autobronzeador. Estando sozinho, aproveitou para experimentar um pouco. Saiu do baheiro triunfante, foi direto na irmã: rodei meia Nova York e gastei os olhos da cara pra te trazer o tal bronzeador e ele não funciona, né? E vc ainda fica me enganando, dizendo que é ótimo. E é ótimo mesmo, Orlando, olha só a minha cor. Pois eu experimentei e não fez a menor diferença. No dia seguinte, com uma espécie de jogo da velha na testa, descobriu, horrorizado, que o produto valia cada centavo.

24.11.06

sua mãe morreu

Duas horas e quinze após o horário da saída, Ângela chegou à escola. O filho, mais do que acostumado com os atrasos maternos, balançava as perninhas no banco do pátio, ao lado do coleguinha que se debulhava em lágrimas. Ângela, mãe escaldada, correu pro chorão. Que que houve, menino? Minha mãe morreu. Ufa, não foi culpa do filho. Não morreu, não, querido, ela tá chegando. Não, ela morreu mesmo. Que nada, quem disse isso? Apontando o dedinho trêmulo na direção de Fabinho, o menino respondeu: ele! Filho, como é que vc fala isso? A mãe dele não morreu. Morreu, sim, mãe, a mãe dele morreu e não vai chegar nunca mais. Sentindo a superioridade do adversário, Ângela foi buscar a ajuda da professora. Enquanto tentavam convencer o aluno da inocorrência da morte, Fabinho, por trás, olhando fixo nos olhos da vítima, repetia baixinho: morreu, sim, sua mãe morreu. O coleguinha, naturalmente, confiou mais nele do que nas duas. Quando finalmente chegou, a desnaturada mãe encontrou o filho e a professora parados do lado de fora da escola já fechada. Ao vê-la, o menino disparou rua abaixo. Tinha medo de fantasma.

23.11.06

vovó em paris

Se foi em Paris que Vovó andou de metrô pela primeira vez, foi também lá que pegou um táxi na metade da quadra pra ir até a esquina. Entrou no carro fazendo cara de dor e gemendo: mes jambes, mes jambes. Desculpou-se pela curta corrida, explicando que não tinha condições de andar até a Sainte Chapelle. O motorista, solícito, nem se importou de perder sua vez no ponto, até porque aproveitou para nos levar quase até a Sacré-Cœur. Em Paris, Vovó não aguentava mais de dez minutos nos museus (as pernas doíam muito), mas gastava horas e horas nas Galeries Lafayette. Vinha me encontrar no curso ao meio-dia, carregada de sacolas, já tendo passado a manhã na loja. Na parte da tarde, era eu quem carregava as compras, o que me rendeu um crônico problema na coluna. Nunca entendi como Vovó fazia para andar metade do dia carregando aquele peso. Provavelmente, despejava tudo em cima de um vendedor das galeries, gemendo: mes jambes, mes jambes. Não comprou nada pra si mesma, mas levou Paris inteira pros outros. Até o sobrinho da amiga da manicure estava na lista. Precisou de sete malas pra acomodar todos os presentes. Na hora de pesar a bagagem, não adiantou fazer o número das jambes, teve que pagar dois mil dólares de excesso. Mas isso é segredo, prometi não contar.

21.11.06

vovó em roma

Vovó em Roma até que se comportou muito bem. Não fosse por uma coisinha ou outra, teria sido impecável. Na verdade, não fosse por uma coisona. Nosso excelente hotel oferecia, como principal vantagem, café da manhã das oito ao meio-dia. Existe coisa melhor do que poder levantar com calma, sem ter que correr pra não perder o café? Imagino que não, mas certeza não tenho. Vovó esnobou a mordomia e, naturalmente, me obrigou a esnobar também. Embora o café só começasse às oito, às sete eu tinha que estar pronta. O objetivo nem era chegar ao bufê antes dos outros hóspedes. Se assim fosse, eu acharia até divertido. A preocupação de Vovó, porém, era outra. Ela considerava que, se o café começava às oito, às oito em ponto as arrumadeiras deviam começar a trabalhar. Vovó não queria atrapalhar o serviço de ninguém, portanto, nesse horário nosso quarto tinha que estar vazio. Para isso, bastaria descer às dez pras oito, certo? Sim, mas não era tudo. Vovó não queria apenas o quarto desocupado, queria arrumado. O que vão pensar de nós se encontrarem esse quarto todo bagunçado? Pra evitar o vexame, às sete começava a arrumar as camas, lavava o banheiro, guardava as malas no armário, até a latinha de lixo do quarto despejava na lixeira do corredor. Lá pelas dez e meia, a arrumadeira chegava e encontrava o milagre, que, infelizmente, durou só uma semana.

20.11.06

inteligente demais pra mim

Novidade no mundo do atendimento telefônico. Pra mim, pelo menos. Vai ver que as telefonistas virtuais existem há muito tempo e eu que estava por fora. O choque de ser atendida de cara, sem ter que teclar um número de um a dez e aguardar quarenta minutos, foi logo superado pela surpresa de estar falando com uma atendente virtual. E não uma qualquer, uma atendente virtual inteligente. Não é mais necessário selecionar a opção desejada, basta agora dizer o que se deseja. Como saber? Como adivinhar o que a telefonista virtual quer ouvir? A cliente de carne e osso não é tão esperta. Pressionada, falo: mudança de telefone. Surpreendentemente, a atendente responde, empolgada: entendi! Santodeus, na minha primeira experiência virtual já tive sucesso! E eu me sentindo incapaz de conversar com uma máquina... A atendente prossegue: mudança de endereço, vou transferir. Não podia dar certo, né? Até porque a virtual certamente cresceu ouvindo só sotaque paulista. Entra a telefonista de verdade: que endereço deseja, senhora? Nenhum, pedi telefone, mas a atendente virtual disse entendi! e me transferiu pra vc. A mulher cai na gargalhada. Ela disse que entendeu, senhora? Parabéns, é a primeira vez. Até hoje ela só tinha dito: não entendi, vou transferir para uma de nossas telefonistas.

19.11.06

prefiro os impontuais

Não sei como vc aguenta esse seu namorado, Aninha. O sujeito nunca chega na hora. Por isso mesmo, queridinha. Não há característica masculina mais sedutora do que a impontualidade. Um homem impontual é um prêmio. Nunca pode reclamar da demora feminina, é um igual. Se o sujeito vem me buscar no primeiro encontro e chega na hora, descarto logo. Invento uma dorzinha de cabeça e nem sigo adiante. Já o impontual, mesmo não sendo tão bom de papo, merece sempre um repeteco. Nem que seja só pelo prazer de ficar pronta primeiro.

17.11.06

cera quente

Há quem busque emoções fortes pulando de pára-quedas, nadando com tubarões, dirigindo a toda velocidade. Tolice, bom mesmo é cera quente. A cera quente é barata, segura e pode ser encontrada em qualquer esquina. Não precisa nem marcar hora, é só chegar, comprar uma dose e aproveitar. Só quem já provou sabe o que é. Permitir que uma pessoa espalhe no seu corpo um semilíquido escaldante, que cola e só sai levando a alma junto, é uma experiência única. Quem conhece a adrenalina que a aproximação de uma espátula lambuzada de cera fervente dispara não quer saber de outra coisa. O grande momento nem é quando a cera é arrancada e vc ganha uma perna nova, como se tivesse trocado de pele, mas quando ela gruda. Nessa hora, vc é a tal, a que pode tudo. Quem vence o desafio sem sair correndo se sente a dona do mundo. A depilação pode parecer uma mera atividade rotineira das mulheres, mas é, na realidade, um esporte altamente radical. Tão bom que vicia e, só por isso, é repetido a cada quinze dias. Mulheres não se depilam por necessidade, mas por prazer.

16.11.06

ridículo e feliz

Papai, piloto aposentado, passava os dias em casa, ouvindo mamãe falar. Passar um dia inteiro ouvindo as conversas de mamãe - com o telefone, com a vizinha, o porteiro, sozinha - não é pra qualquer um. Papai merecia receber pela tarefa. Eu e meus irmãos só aguentamos porque nos trancamos nos quartos e ouvimos música no último volume. E olha que, mesmo com o som no máximo, ainda é possível distinguir lá no fundo as gargalhadas de mamãe. Papai vivia rabugento com a falação, até resolver dar uma arrumada em seu antigo equipamento de vôo. Anda agora pela casa, ridículo e feliz, com o fone de ouvido pregado na cabeça. Coisa de piloto profissional, abafa qualquer ruído.

14.11.06

insônia

O moço ligava quase todas as noites, conversava e cantava pra moça dormir. Ela não gostava do quase e, mesmo acreditando no poder das palavras, ousou dizer: sem sua música, não consigo dormir. Funcionou, o moço passou a ligar sem falta. Cantava, a moça fingia que dormia, mas ficava era bem acordada, comemorando a própria esperteza. O moço agora não liga mais, nem de vez em quando, e a moça, que sempre dormiu muito bem, morre de arrependimento. Por que não inventou outra coisa qualquer? Foi-se o moço, ficou a insônia. Aqui se fala, aqui se paga.

13.11.06

promessa

Depois das brigas homéricas que levaram à separação, vieram as brigas por conta da pensão. Embora tivessem chegado a acordo quanto a valor e data, acordo passado em juízo, o ex-marido nunca pagava o que devia. A mulher não se conformava. Tanto tempo brigando com o marido, tanto sofrimento, e agora que ia ficar só com a parte boa, o dinheiro, nada. Todo mês era aquela agonia. A pensão atrasava, a ex reclamava, o ex sumia e o dinheiro, quando aparecia, vinha pela metade e olhe lá. Até que o marido pagou antecipado, cada centavo. A mulher comemorou. Finalmente tomou juízo, resolveu ser homem. Ou então vai é desaparecer e me deixar com o Paulinho e sem um tostão. Mas o ex não tinha intenção de ir a lugar nenhum. Desde os tempos do casamento, andava de olho na prima mais nova da ex. Tentou de tudo, mas a loura não queria conversa. Aí, apelou. Pensou em subir umas escadarias de joelho, passar um mês sem a cervejinha, largar tudo que era vício, mas, convencido de que só se consegue uma graça sofrendo pra valer, prometeu: pra ficar com a Marina, até pensão em dia eu pago, todo mês. Graça alcançada, promessa cumprida.

12.11.06

tia mirtes anda muito confusa

A avó foi com uma das netas, filha da Luíza e do João, visitar a cunhada. Ela anda muito confusa, Aninha, troca os nomes, trate de disfarçar. Depois do lanche, a avó e Tia Mirtes foram dar um passeio no jardim. Voltando pra casa, passam por uma moça sentada na varanda. Que linda, Mirtes, não conhecia essa sua neta. Não, Zilda, essa é a Aninha, filha da Luíza e do João. Não conhece, não? Ah, sim, claro, já fomos apresentadas. No carro, a avó comenta: coitada da Mirtes, anda tão confusa.

11.11.06

botafogo não é passagem

Dizem, os moradores e os detratores, que Botafogo é passagem. Injustiça. Botafogo pode até ter sido, mas não é mais. A prova é que Botafogo agora tem Lojas Americanas. Imagina se as Lojas Americanas iam se instalar numa passagem. E não é só. Botafogo agora tem C&A. Bairro que tem C&A, meu amigo, é bairro de categoria. Qualquer hora dessas, vão abrir um McDonald`s em plena São Clemente. Aí quero ver alguém ainda chamar Botafogo de passagem.

10.11.06

perna de coelho

Quando a psicóloga chegou no trabalho, encontrou a escola num alvoroço. Marcas de sangue pelo chão, professoras correndo dum lado ao outro, alunos, animadíssimos, contando detalhes da tragédia em versões cada vez mais dramáticas. O fato é que alguém havia arrancado a perna do coelhinho do jardim. O coxo, branquinho, branquinho, foi encontrado tingido de vermelho sangue - sangue mesmo. Que horror, disse a psicóloga, quem foi o desequilibrado que fez isso? Ainda estamos investigando. Pois quando descobrirem tragam direto pra mim. Vamos começar hoje mesmo um tratamento intensivo. Lá pelo meio da tarde, chegou a notícia de que o responsável havia sido encontrado. Ele disse que só queria arrancar uns pelinhos do coelho, mas a perna acabou saindo junto, informou uma aluna. Pois ele pode enganar os pais com essa conversa, não uma profissional, disse a psicóloga. O que estão esperando pra trazer a criança? Mal falou e viu a diretora no fundo do corredor, trazendo um aluno louro, lindo, carinha de anjo - seu anjo. Desesperada, a psicóloga se dá conta de que o monstro, o perigo pra toda a escola, é seu filho. Lança seu pior olhar ao menino e diz: vc vai se ver comigo, vamos resolver isso agora mesmo. Sob o olhar aprovador da assistência, sai arrastando o filho pela orelha e sussurrando: tá doendo, filhinho? Que nada, mãe, tá de levinho. Dali, foram direto pra casa, ver tv e aproveitar a tarde de folga.

9.11.06

surpresas

Se é certo que os jovens não conhecem nada de Mozart, Brahms ou, vá lá, Noel Rosa, mais certo é que os velhos não conhecem nada de nada.
Vovó, cansada de ouvir Janis Joplin gritar na vitrola, vem eufórica me mostrar o jornal do dia. Olha aqui, minha filha, por que vc não ouve esse cantor? Qual, vó? Esse aqui, música de qualidade, o jornal tá dizendo. Vira o jornal e me exibe, em página dupla, a clássica foto em preto e branco da Janis com a cabeça cheia de penas. Já tô ouvindo, vó, nós duas estamos.
Ok, a Janis tá meio ultrapassada, mas Cássia Eller, não. Acompanho minha tia-avó ao show da cantora. Titia não é fã da moça, foi só prestigiar a banda do neto, que ia abrir a noite. Cássia sobe ao palco, começa a ajeitar o microfone, e titia: cadê a Cássia Eller? Ué, tia, tá ali, sentada no banquinho. Onde? Tia, só tem um banquinho no meio do palco. Cássia começa a cantar e titia ainda não a identificou. Ali, tia, a que tá cantando. Não, mas é um homem! Titia acabou virando fã: adorei, esse Cássia Eller é bom mesmo!

8.11.06

tpm

A distinta senhora tomou o táxi no ponto de sempre. O motorista correu pra abrir a porta, perguntou como ela estava, se a rádio era do agrado, se deixava o ar ligado e, por fim, pra onde iam. Leblon, respondeu. Sim, senhora, pelo Jardim Botânico ou por Ipanema? A pergunta a irritou mais do que tudo na vida. A rigor, nem era uma pergunta, era um insulto, uma agressão. A senhora não ia deixar barato, não senhor. Precipitou-se em direção ao agressor e cravou-lhe uma mordida caprichada no braço direito. Não uma mordida de poodle, mas de rottweiler. Sabe-se lá como não arrancou pedaço. Feito isso, endireitou-se no assento e disse: sinto muito, é a tpm. Podemos seguir, Jardim Botânico ou Ipanema, tanto faz.

7.11.06

santo antônio

Da viagem à terra natal, Vovó trouxe doces para meus irmãos, um colar pra minha irmã e um enorme Santo Antônio de madeira pra mim. Estranhei, já que a casadoura da família é a caçula, mas Vovó explicou. Com ela, casamento é à moda antiga, as mais velhas primeiro. Por mim, pouco importa se minha irmã não se casar tão cedo. Ela é que não ficou lá muito satisfeita e tomou suas providências. Comprou seu próprio Santo Antônio e dedica-se a torturar o pobre de todas as maneiras. Já o meu tem vida boa. Vive entre a tv e o armário, de cabeça pra cima e com seu menino no colo. Não mexo com ele, ele não mexe comigo e ficamos assim. Vovó é que não se conforma. Não entende como o santo, morando comigo já há alguns meses, ainda não me arranjou um marido. Entra no quarto e vai logo falando, como se eu não estivesse ali: e aí, santo, como é que é? Sim, Vovó conversa com meu Santo Antônio. Desconfio que, na minha ausência, faça ainda mais. Imagino as ameaças terríveis, as pragas que não deve lançar contra o santinho. Pior, imagino as promessas. Uma espanada de tempos em tempos, um altar confortável pra morar... Santo Antônio, até agora, nada. Por isso sou amiga do santo. Não se vende fácil.

6.11.06

na vitrine

Minha amiga só fala espanhol, mas é valente. Veio me visitar em Paris e resolveu seguir sozinha pra Londres. Não quis cortar o barato de ninguém e me limitei a tentar evitar maiores imprevistos no território francês. Na véspera, fomos de metrô até a estação, anotando todas as conexões, compramos a passagem, localizamos a plataforma, ensaiamos tudo. A amiga garantiu que a minha companhia era desnecessária e, tendo feito o ensaio geral, achei que podia mesmo continuar dormindo. O trem partia às seis da manhã e a idéia de acordar às quatro e meia em pleno inverno europeu não era das mais empolgantes. No dia seguinte, dei um tchauzinho e voltei a dormir. A amiga arrastou a mala pelos intermináveis corredores, desceu as escadarias, atravessou o enorme saguão, não esquecendo de apertar o botão pra destravar o portão, e... ficou presa. No meu plano perfeito, não levei em conta que ele só abria às seis da manhã. Antes disso, só pela entradinha lateral. Não teria sido tão grave se a porta de entrada também não abrisse. Mas abriu e, pra voltar, só destravando por dentro. Quem destravaria àquela hora? A amiga primeiro tocou a campainha, inutilmente, gritou, inutilmente, chorou, também inutilmente. Afinal, se rendeu e aceitou o fato de que ficaria congelando num cubículo enquanto seu trem partia com um lugar vazio. Não seria tão grave se o portão não fosse de vidro. Cinco e cinco, passa o padeiro, tá a amiga na vitrine. Cinco e dez, o leiteiro, a amiga ainda na vitrine. Cinco e quinze, o jornaleiro, a amiga continua lá. Cinco e meia, uma pequena multidão observa a moça, que já estava até gostando da brincadeira e se divertia fazendo caretas e rebolando - pra se exibir e pra espantar o frio. Seis horas, vem a freirinha - sim, papai concordou com a viagem, mas me enfiou num alojamento de freiras. A amiga se lança nos braços da religiosa e, ciente de que seu espanhol não valeria de nada, repete freneticamente meu nome, caprichando no biquinho. Seis e cinco, não é um pesadelo, tem uma freira no meu quarto, puxando minha amiga pelo braço. A freira, num francês que, felizmente, só nós duas entendemos, descreve a performance da amiga. Graças a Deus, perdi a cena. Não sei se nossa amizade teria sobrevivido ao ataque de risos que ela me provocaria.

4.11.06

função dúplice

Vovô era maestro. Chefiava a orquestra nos bailinhos do clube de sua cidade. Do alto do palco, Vovô não bobeava. Ficava de olho nos casais mais assanhados. Assanhado, naquele tempo, era o pobre casal que dançava de rosto colado ou ousava trocar um beijinho na bochecha no meio da pista. Pois Vovô não dava folga. Parava a música, descia do palco e ficava encarando suas vítimas. Ele e o salão inteiro, naturalmente. A atitude gerava revolta nos jovens, mas Vovô não se importava. Aos que reclamavam, lembrando que ele era um maestro e não um bedel, respondia: minha função aqui é dúplice, tocar e fiscalizar. E recomeçava a música e a vigia.

3.11.06

a madame sempre vence

Todo dia é um suplício. A madame leva mais de três horas pra sair e passa as três ameaçando. Tô indo, hein? Então vamos? Pode chamar o elevador. Só os principiantes caem nessa. A madame não sai, não adianta. E quando sai, sai batendo a porta e tirando onda. Vc não vem, não? Não posso esperar. Se vc sai, a madame lembra que esqueceu só uma coisinha e te deixa do lado de fora, esperando de novo. Ora, vc pensa, é só sair mais tarde. Sim, mas nesse caso a madame não se lembra da coisinha e é vc quem tem que carregar depois. Não adianta se revoltar, o objeto abandonado é sempre essencial e sem ele o dia da madame não vale nada. E lá vai vc pela rua com um saquinho ridículo na mão. E se vc, espertamente, sai antes? Tá indo, meu amor? Dá pra me ligar quando chegar? Quero que vc resolva uns assuntinhos pra mim. Ah, vc pensa, então nem saio, fico em casa e pronto. Pois, prepare-se, a madame vai ligar pelo menos dez vezes, cada hora com um pedido diferente. Coisa do tipo abra a terceira gaveta da cômoda da direita, pegue o documento dentro do envelope azul, não tem?, ah, então abra a segunda gaveta da cômoda da esquerda e procure no envelope amarelo. E assim o dia todo. Melhor sair, então. Sair quando? Antes, durante ou depois? Não importa, a madame sempre vence.

1.11.06

celulares não são de outro mundo

A mulher é do tipo que só quer saber do que é bom e melhor. Só janta no melhor restaurante, anda no melhor carro, mora no melhor bairro e tem o melhor marido. O marido é bom mesmo, se desdobra, faz de tudo pra agradar. Deu pra mulher um celular que é, claro, o melhor. Olha como é bonito, meu bem, é o mais moderno. Tira foto e tem até tem comando de voz. Comando de voz? É, vc não precisa discar, é só falar o nome da pessoa e ele liga sozinho. Entregou o presente e foi tirar uma soneca. Quando voltou, a mulher estava de pé no meio da sala, gritando com o telefone. Tia Euflásia, Tia Euflásia! Olha pro marido. Esse celular é uma porcaria. Tia Euflásia! Por que, meu bem? Ele não liga pra quem a gente quer coisa nenhuma. Tia Euflásia! Mas, meu bem, pra quem vc está ligando? Pra Tia Euflásia, não tá vendo? A que morreu há trinta anos? Claro, a única Tia Euflásia que eu tenho. Tia Euflásia!Qualquer hora a mulher larga esse marido. Onde já se viu comprar um celular que não faz nem contato com o além?