31.3.12

foi o gonzalez quem fez

Tem quem ache que roupa de grife é que é bom. Vovó, não. Quer dizer, não é que não, que pra Vovó certamente o Gonzalez é uma grife.  Aliás, a melhor do mundo. Pra Vovó, não tem quem bata o Gonzalez. Nem Chanel, nem Dior, nem ninguém. Há quanto tempo o Gonzalez existe na vida da Vovó não se sabe. De onde veio, também é mistério. O paradeiro quase nunca é sabido. Entre idas e vindas da Europa, Gonzalez quase mata a Vovó de paixão. É, agora é definitivo, ela diz desconsolada. Vendeu tudo, voltou pra Pontevedra. Agora, só comprando em loja mesmo. Mas o Gonzalez, com saudade da praia, das moças, ou vai ver que da Vovó, sempre volta. Aí, é uma alegria. Vovó corre pra renovar o guarda-roupa. Não me entendam mal, Vovó não é perdulária.  Tem o armário recheado de criações do Gonzalez, mas também só veste Gonzalez. Usa até hoje, e com frequência, vestidos de vinte, trinta anos atrás. Esse usei nas minhas bodas de prata, fala com orgulho. Esse foi o do casamento do seu pai. Ainda cabe, se gaba. A Vovó adora provar que mantém a silhueta. Mas o que dá realmente prazer à Vovó, o que ela não deixa nunca de dizer quando alguém elogia o figurino, porque pra ela vale até mais do que o elogio em si, é: foi o Gonzalez quem fez!

 









 

23.3.12

encomenda

Tia Esmeralda, casamenteira que só ela, entra no quarto toda assanhada: quem é esse que tá na sala? É o Vitor, Tia Esmeralda, meu fisioterapeuta. O Vitor? Mas como ele é alinhado, bem-apessoado! Anda, menina, não deixa ele lá esperando. Chego na sala e Tia Esmeralda, claro, já tá sondando o fisio. Quando me vê, dá uma piscadela e sai de mansinho. Passa a sessão atrás da porta, apontando pro Vitor e desenhando coraçõezinhos no ar. Mal espera ele ir embora e já volta à carga. Simpático ele, né? Simpático, bonitão e, principalmente, sem aliança! Muita sorte ter virado seu fisioterapeuta! Sabia que ele perdeu a irmã? Tia Esmeralda, você é impossível! Fez o Vitor te contar isso em dois minutos de conversa? Ele não me contou, não, eu vi na tv. Você viu o Vitor na tv, quando? Toda hora, ué, e não é só pra falar da irmã, não. Ele vive aparecendo naquelas lutas que você gosta de ver. Não, Tia Esmeralda, aquele é o Vitor Belfort! Eu sei, menina, eu sei o nome dele. Peraí, o Vitor não é o Vitor Belfort? Claro que não, Tia Esmeralda, de onde você tirou isso? Você me disse, esqueceu? Eu perguntei quem estava na sala e você respondeu que era o Vitor Belfort. Não, Tia Esmeralda, eu não disse que ele era o Vitor Belfort. Primeiro, porque o Belfort tá preocupado com o pé dele, não com o meu. Segundo, porque o meu fisio é a cara do Zé Aldo. A cara e o corpo, aliás. Peso pena, no máximo. Você não viu o Belfort na tv? Claro que vi. Acho essa luta um horror, mas não sou boba. Esse aí é a cara dele. A cara e o corpo, né, Tia Esmeralda? A cara e o corpo, eu reparei bem. Essa tá boa, Tia Esmeralda, a lenda viva do MMA cuidando dos meus pés... Aliás, essa tá ótima! Traz o Belfort, Tia Esmeralda, traz o Belfort!

21.3.12

dindinha

Ela fumava sem parar, cigarros Malboro. Sentava na frente da tv com os malboros e ia madrugada adentro, só dormia de manhã. Ela roncava muito, quando calhava de dormir com ela era um horror. Ela era brava e mandava na casa e na gente. Me obrigava a comer até o fim, querendo ou não. Ela era gorda e no dia em que caiu da escada quase matou todo mundo de susto porque ficou lá estirada sem conseguir se mexer. Eu nem tinha nascido, mas sei porque ninguém esqueceu. Eu também sei, de ouvir falar, que no dia do assalto o ladrão mandou ela deitar na banheira e depois foi um sufoco pra tirar ela de lá. Num dia de bagunça, ela me trancou no quarto dela e eu revirei tudo lá dentro. Ela quase morreu e nunca mais me trancou. Ela falava largatixa e eu morria de vontade de corrigir, mas não corrigia. Ela um dia chamou um fulano de manda-chuva e eu achei graça porque ela queria dizer o contrário, mas também não corrigi. Ela depois me chamou de saliente e eu fiquei pensando o que que ela queria dizer com aquilo. Ainda não descobri. Ela foi embora, mas vinha de visita às vezes e deu pra ver quando começou a perder a voz e os movimentos. Eu que passei a ir de visita e cada vez ela tava pior, mas com a doença, ou a idade, ou a saudade, ou tudo junto, foi perdendo a rabugice e ficando cada vez mais alegre e animada. Pra ela eu acendi, e acendo, as velas de todas as igrejas que visito. Só porque eu sei que ela gostaria. Sempre que alguém falava que ela não ia aguentar muito tempo, eu nem ligava porque tinha certeza de que ia, sim.  Quando me disseram que a coisa era séria e ela já tava perdendo a consciência, eu fui minuto a minuto na estrada pedindo pra ela me esperar. E um dos momentos mais bonitos da minha vida vai ser sempre aquele em que ela me olhou e encheu os olhos d'água e eu vi que tinha conseguido. Deu pra dizer tudo que eu tinha guardado a viagem e a vida toda pra ela, tudo que eu queria que ela levasse com ela. Depois, eu parei de falar e a gente ficou muito tempo conversando só com os olhos e ela me disse coisas lindas que eu é que vou levar comigo. Eu não tenho mais tantas lembranças dela, mas eu sinto a presença, o jeito de andar, a textura da pele, a estridência que a voz dela às vezes tinha quando ela ainda tinha voz, essas coisas que ficam na gente. Ela ficou em mim.