2.11.11

risco de vida

O tripé dos sonhos de qualquer fotógrafo, levíssimo, dobrável e de excelente desempenho. A cronista sai de casa toda contente com a maravilha, mas, no que põe o pé na rua, descobre que ela é perfeita pra carregar na mão, mas na bolsa vira um trambolho. A cronista pára pra descarregar, encostada no capô do carro em frente. Mal começa a puxar o tripé, vê, pelo vidro quase preto, alguma coisa se movendo lá dentro. Forçando a vista, a cronista descobre um homem deitado no banco do motorista. A cronista morre de vergonha de ter sido flagrada usando o carro alheio como se fosse a mesa da sala e se aproxima pra se desculpar. Vê o homem rindo, tremendo, segurando o peito como se fosse infartar. O homem aponta desesperado pro tripé e a cronista se dá conta de que o objeto inofensivo, em sua capinha preta e dura, mais parece uma metralhadora, um fuzil ou outra arma qualquer. A cronista percebe que o homem, acordado no susto, se viu vítima de um assaltante, um sequestrador ou um simples bandido entediado que, na falta de coisa melhor, se preparava pra brincar de tiro ao alvo. Ao ver a cronista, moça formosa e delicada, saibam, leitores, relaxou, mas o ataque de nervos foi inevitável. A cronista começa a rir e gesticular em sinal de desculpas e é quando se dá conta do perigo. É a vez de a cronista tremer e segurar o peito, quase morrendo do coração. E se o bandido fosse ele? A cronista correu sério risco de vida! Mas tudo acabou bem. Nenhum dos dois estava armado, nenhum dos dois era bandido. Tiveram sorte. Numa cidade como esta, podiam ter levado um tiro.

23.6.11

vovó e a cerveja

Lidando com uma penca de enfermeiras que se revezam num ritmo infernal, Vovó, que já gosta de trocar os nomes dos filhos com os dos netos, aprendeu a se defender. Sentindo a chegada da moça do dia, vira-se de costas e pergunta quem vem lá. Sou eu, Doutora, a Fulana. Aí é só associar o nome a alguma coisa bem fácil de lembrar e não se preocupar mais com o assunto. Tem a de nome igual ao da presidente (Vovó não diz presidenta nem sob tortura). Tem a mulher do Príncipe Charles (Vovó ainda se lembra do Príncipe Charles...). Tem até a namorada do Roberto Carlos (Vovó jura que o Rei e a Ternurinha quase casaram). Só Vanessa que não teve jeito. Vanessa é Vanessa, Vovó passa a noite repetindo pra não errar. Vanessa quieta na copa e Vovó na sala, baixinho: Vanessa, Vanessa. Na hora de chamar é só aumentar a voz: Vaneeessa! Vem a novela, Vovó: Vanessa, Vanessa, vem o comercial, Vovó: Vanessa, Vanessa, vem a Sandy, bem loura, bem desinibida, bem gostosa, Vovó: Devaaassa! E vem a enfermeira, morena acanhada, um poço de inibição. Vovó na hora cai em si. Ai, minha filha, desculpe, foi essa cerveja indecente! Você não é nada disso, bem se vê que é moça direita. E a devassa Vanessa: Não tem problema, não, Doutora. Faz um mês que a senhora me chama assim. Já me acostumei.

1.4.11

não pode ter nada melhor

Quem já fez spinning sabe como é. Posição um, posição dois, senta, levanta, subindo ladeira, mais rápido, mais rápido. E vc vai entrando num delírio, vc não é uma aluna numa academia, vc tá no meio da selva, lá vem a onça, mais rápido, vc tá no mar, olha o tubarão, mais rápido, vc tá cansada, mas é vida ou morte, mais rápido, mais rápido. Tem hora que vc se sente a tal, pedala feita louca, deixa a bicharada toda pra trás. Aí o cansaço vai apertando, vc não vê mais bicho nenhum, vc tá no fundo do poço. Nisso, o pedal escorrega e vc percebe que não, vc não tava no fundo do poço. No fundo do poço vc tá agora, espatifada no meio da sala, todo mundo em volta segurando o riso. Aí é um corre-corre danado, o professor em estado de choque, o pé violentamente torcido, a vergonha, a vergonha, a vergonha. E vc tenta se convencer de que não foi nada, quem sabe ninguém nem viu, mas por dentro urra, de ódio e de dor. E no meio daquela coisa toda, de repente vem a luz, e não tem mais vergonha, nem ódio, nem nada. Pé imobilizado, quinze dias sem malhação, não pode ter nada melhor.

2.3.11

vovó e o fim do mundo

Não saia daí, minha filha. Jogaram um avião, as torres caíram, é a Terceira Guerra Mundial! Mas foi lá nos Estados Unidos, Vovó, tá tudo tranquilo por aqui. Tranquilo, como? Os Estados Unidos podem destruir o mundo vinte e três vezes! Vinte e três vezes, nunca entendi, basta uma, basta uma! Não vão explodir, não, Vovó, os russos não deixam. Não deixam? Os russos é que estão por trás de tudo! Querem explodir os Estados Unidos vinte e três vezes também! Já começaram com as torres, agora vai ser bomba pra todo lado. Não saia, minha filha, não saia, com russo ninguém pode! Ué, Vovó, mas não foi coisa do Afeganistão? Quem disse, aquela mocinha da televisão? Sempre achei esquisita, tá do lado dos russos, tá na cara. Muda de canal, rápido, vai que já inventaram míssil pela tevê. Cadê seus pais? Liga pra eles, liga pros seus irmãos. Diz que é pra não sair de casa. Mas, Vovó, se o mundo explodir, a casa vai junto, né? Não me contrarie, minha filha, não me contrarie. Manda todo mundo voltar pra casa já. Agora vou desligar, tenho que ir. Pra onde, Vovó? Pra rua, ora. Vou pichar parede, jogar no bicho, quem sabe me tatuar. O mundo vai acabar, tenho que aproveitar. Não saia daí, ouviu bem, não saia daí.

17.2.11

o japa dos meus sonhos

É famosa a queda da cronista por japoneses, chineses, coreanos, tailandeses, japas de todos os gêneros, olhinhos puxados de modo geral. Japa é japa, e a cronista há de ter um pra chamar de seu. A busca não é fácil, mas a cronista não desiste. Cansada de procurar por estas bandas, vem planejando uma investida in loco. Começou a estudar japonês, faz aulas de origami, taekwondo e shiatsu. Em casa, só anda com uns tamanquinhos de madeira, já se vendo nas ruas de Tóquio toda vestida de gueixa. Dá voltas e voltas na Lagoa, pra tirar de letra a Grande Muralha. Cuida de um bonsai, coitado, e toma chá todos os dias, mesmo odiando, pra não fazer feio na hora do ritual. A cronista está disposta a tudo e todos. Tem intenções tão sérias que considera até um lutador de sumô. Mas fique claro que não serve qualquer japa. A cronista sabe que só um é o dela. Às vezes, cansa da espera, xinga o destino, mas não desanima. Examina em detalhes todo japa que encontra, não perde o clima de agora vai. E nisso a cronista entra num boteco e pede uma coca. Tlês reais. O coração da cronista bate fraco, arrisca parar. O japa dos meus sonhos existe. Não é um samurai, nem veio montado num dragão chinês. Trabalha no pé-muito-sujo ali do lado e nunca vai me levar pra Xangai. Mas finalmente chegou.