26.5.07

palmas pra ela

O carro de som estaciona no meio da rua. Os manifestantes, líderes disso e daquilo, vão se revezando ao microfone. Esbravejam, esbravejam, enlouquecem a indefesa vizinhança. No que a confusão parece diminuir, chegam mais quatro ônibus, um deles trazendo o ídolo máximo da multidão, sindicalista velho de guerra. Mal começa seu discurso, morre de tiro certeiro. No jornal da noite, as teorias conspiratórias se multiplicam. Analistas, artistas, astrólogos, vêm todos opinar. Acusam situação, oposição, forças ocultas, ninguém escapa. Pois erraram feio. Descobriu-se depois que a assassina era uma mulher qualquer, que de política queria distância. Vinha suportando bem quatro horas de manifestação, mas se descontrolou quando ouviu o quadragésimo nono companheiros e companheiras! Decidida a viver seu dia de fúria, buscou a espingardinha do marido e disparou. Nada mais natural. Essas passeatas enlouquecem mesmo a pessoa, deixam no chinelo as mais mirabolantes torturas chinesas. As palavras de ordem, as buzinas, as musiquinhas transtornam qualquer um. Ou vc adere e sai pra rua e pra luta, ou perde o juízo e atira. Calma, ninguém aqui defende a violência, que fique claro. Repitamos juntos: violência, não, violência, não, violência, não! Dito isso, vamos ser francos, palmas pra ela.

17.5.07

cena de cinema

A paixão começou quando o patrão, por engano, acertou na coxa dela o beliscão que era pro filho. O patrão era um grisalho charmoso, mas antes do belisco a babá nem tinha reparado. Dali pra frente, caiu de amores. Passou a sonhar com o galã todos os dias, cada vez inventando um final ainda mais feliz. Ela vinha sempre de Sharon Stone. Já ele, impossível decidir, ora era George Clooney, ora Richard Gere. A babá não era páreo pra patroa, sabia. Nunca tentou transformar os filminhos em vida real. Se contentava só de ver o patrão à noite, quando ele entrava no quarto pra beijar o filho. Queria porque queria um beijo daqueles, na testa mesmo, nada cinematográfico, mas, não sendo páreo pra patroa, nem pedia. O auge da glória era quando o patrão falava com ela. Não passava de um meu filho já dormiu?, mas, pra ela, a música subia, a câmera dava um close nos dois e o resto do mundo sumia. Até ligava pras amigas pra contar. Hoje ele falou comigo. Te pediu em casamento? Não, perguntou do filho. Já é alguma coisa, vc tem que se declarar. Que nada, respondia, não sou páreo pra patroa. A babá acabou se cansando da situação. Ela era a mocinha, afinal de contas, e a mocinha pode até ficar sozinha, mas tem direito à última cena. Sabendo que não era páreo, optou por um final triunfante. Deixou pra trás patrão, patroa, menino e um bilhete que dizia: João Cláudio, eu te amo, The End. E foi-se embora sem olhar pra trás, arrancando lágrimas da platéia.

9.5.07

blind date

As amigas combinam uma tarde de compras no shopping novo. Do táxi, Joana telefona pra avisar que já saiu. Descobre que Beatriz está numa rua próxima e decide ir até lá. No local, há um carro azul parado na esquina. O de Beatriz é vermelho. Joana telefona para conferir. É você nesse carro? Sou, troquei mês passado. E vc, cadê? Tô aqui no táxi. Vem logo, tenho um monte de fofocas pra te contar. Também, tô louca pra te ver. O taxista perde a linha, gargalha. Que foi, moço? Desculpe, senhora, mas eu nunca vi nada assim. Assim como? Assim, um encontro assim. Assim como, meu senhor? Assim, dona, duas desconhecidas, é a primeira vez no meu táxi. Joana acha graça e nem esclarece. Paga, agradece e vai embora. Perde a chance única de dizer: peraí, moço, que se eu não gostar eu volto.

5.5.07

o que realmente me espanta

Um dia uma mulher morreu lavando o cabelo no salão. Não que aquilo pra ela fosse novidade, nunca lavava em casa. Três vezes por semana, passava no salão. Ela e o cabeleireiro eram íntimos. Trocavam confidências, ficavam horas naquela função. Enquanto a conversa estivesse animada, o cabeleireiro ia lavando e relavando a cabeleira. Às vezes, chegava a passar umas cinco ou seis mãos de xampu, fora o condicionador. A mulher saía com torcicolo, mas nunca interrompia. A verdade é que era doida por ele. Quando não tinha o que contar, inventava. Falava sem parar pra ele não parar de lavar. No dia da morte, criou um enredo tão intrincado que, percebeu, precisaria de umas três lavagens pra desenrolar. Tentou interromper o relato, mas o cabeleireiro não quis saber de cenas dos próximos capítulos. Lavou os cabelos mecha por mecha, descoloriu, hidratou, fez de tudo, só pra não perder o final. A mulher, de tão apaixonada, foi em frente. E haja paixão, viu, pra suportar uma hora e meia numa daquelas cadeiras de salão. É uma forma sofisticada de tortura. O corpo vai escorregando devagar enquanto a cabeça fica presa no escorredouro. Com o tempo, parece que as duas partes vão se despregar. Dói que é uma beleza, mas a mulher não se rendeu. Antes do fim da história, porém, não resistiu e morreu. Pelo que deu no jornal, a pressão estourou uma veia no cérebro, qualquer coisa assim. O cabeleireiro se desesperou. Não tanto pela cliente, mas pela história sem fim. Quem já descobriu no final da leitura que faltava a última página do livro há de lhe dar razão. Uma história inacabada é um castigo quase tão grande quanto uma lavagem no salão. O cabeleireiro ainda tentou reanimar a mulher, mas não teve jeito. Ela morreu mesmo, lavando o cabelo no salão. Parece incrível, reconheço. Soa mais como invenção de cronista maluca, mas aconteceu de verdade. Pra ser sincera, o que realmente me espanta é que não morra uma por dia.

2.5.07

quase nada

O menino pergunta à mãe quem é a criança suja e maltrapilha dormindo na rua. É um pobrezinho, a mãe explica. E o menino, que nunca tinha visto um daqueles: mas pobrezinho não tem casa, mãe? Pelo visto, não tem. Pobrezinho não tem carro? Não, com certeza não tem. Mãe, pobrezinho tem computador, prancha, videogame? Não, pobrezinho não tem nada. Nem celular e ipod? Não, meu filho, nada mesmo. O menino não desiste: mãe, pobrezinho tem peru?