23.4.20

os miseráveis

Sempre fui atraída por ele. Amava o peso, o número de páginas, o desenho da capa. Comecei a tentar lê-lo pequena. Fracassei, era demais pra uma criança. Fui fazendo tentativas ao longo dos anos.  Lia vinte páginas, desistia. Tempos depois, começava de novo. Lia cinquenta, cem páginas, desistia. Até que, aos treze, li do início ao fim. Passei a amar também a história, além do peso, do tamanho, da capa. Por ter tentado muitas vezes, li mais o início do que o resto. Provavelmente por isso, e também por ser criança, sou fascinada pela parte inicial, sobretudo pela cena da menina maltratada ganhando uma boneca de presente. Do meio pro fim, vou me lembrando menos, o que é bom, pois acabo sempre relendo. Li já algumas vezes, em português, em francês, sempre em edições diferentes. Certamente, vou ler outras mais e continuar a acumular exemplares. Não resisto ao título. O peso, o número de páginas, já não me impressionam mais. Os livros, sim, me fascinam mais e mais. Gosto da diversidade de formas, tamanhos, capas, lombadas, títulos. Volta e meia, privada de livrarias pela quarentena, fico sentada de frente pra estante, olhando meus livros, suas capas, seus títulos, sua disposição nas prateleiras. Hoje especialmente, sendo Dia Mundial do Livro. Em breve, espero, vou voltar a passear entre as mesas das livrarias, rodeada de livros. É como imagino o paraíso.

17.4.20

cristo

O Cristo, do alto, olha a cidade cheia de gente e fica de lá pensando que diabos esse povo pensa que está fazendo. O Cristo sabe que deveriam estar em casa. Não porque tenham lhe contado, mas porque de outro modo não estaria fechado, e também porque, sendo Cristo, sabe de tudo. O Cristo se pergunta quanto tempo mais vai ficar sozinho, sem devotos, sem turistas. Isso ele não sabe e desconfia que nem Deus saiba. O que ele sabe, não por ser Cristo, mas por não ser idiota, é que quanto mais gente se amontoar, mais vai demorar pra tudo passar. O Cristo vê dias mais e menos movimentados, mas praia vazia mesmo, lagoa vazia de todo, isso ainda não viu. Sabe que há quem diga que vai com cuidado, mantendo distância dos outros, mas pensa que se forem todos por esse caminho, não vai ter espaço livre pra ninguém. Sabe que alguns se acham, e de fato são, imunes ao vírus, mas se espanta que não pensem nos outros. De tudo, o que deixa o Cristo mais danado é ver os velhinhos andando faceiros na rua, como se o drama não fosse com eles. Nunca pensou que as velhinhas carolas fossem demonstrar tanta desconsideração pelas próprias vidas e pela dele próprio, obrigado a permanecer sozinho na corcova do morro, por conta da teimosia alheia. O Cristo tem visto nos últimos tempos mais e mais gente fazendo festa na rua, dançando, se abraçando, fazendo pouco do vírus que está ali, de boca aberta, pronto pra dar o bote. Entende o povo, sabe que ficar sozinho não é fácil. Até ele, mesmo com a vista privilegiada, tem dificuldade em ficar isolado. Até ele fica tentado a descer de seu pedestal e se misturar aos outros nas ruas. Pensa nisso, fantasia, mas jamais faria. O sacrifício é necessário, ele sabe. Nem todos sabem, ele entende. Não julga, perdoa. Passa as noites em claro, vigiando a cidade, com os braços abertos sobre nós. Abençoa a todos, cumpre seu papel, esperando pacientemente que nós também façamos a nossa parte. Pra que ele possa voltar a ter gente a seus pés, lá no alto do morro.

11.4.20

páscoa

De todas as festas, a preferida dele era a Páscoa. Tinha fascínio por chocolate, desde pequeno. Adorava entrar nas lojas e ver os tetos brilhando com ovos de Páscoa de diferentes cores e tamanhos. Ia comendo ao longo de semanas os que ganhava, um pedacinho por vez, para durar mais. Não tinha dúvida da profissão que seguiria. Desde sempre quis ser chocolatier, ou chocolateiro, como preferia dizer. Sua loja de chocolates era a melhor da cidade, com uma variedade inesgotável de produtos. Vendia bombons, barras, bolos, sorvetes, tudo que pudesse ser feito com chocolate. A especialidade, claro, eram os ovos da Páscoa, que mais uma vez vinha chegando. A deste ano, no entanto, não ia ser como as outras. A cidade inteira estava em isolamento, por conta da pandemia. A loja nem abriria, como já acontecia há semanas. Nenhum ovo seria vendido, nenhum centavo seria recebido. Ia ser Páscoa, mas não ia ter festa, não ia ter criança hipnotizada pelos ovos, sem conseguir escolher, não ia ter gente provando os sabores novos, elogiando, nada. Nem por isso o chocolateiro desistiu de fabricar seus ovos. Fez vários, um mais bonito que o outro. Ficou um bom tempo sentado, apreciando suas criações. Tão bom quanto fazer era ficar depois olhando os ovos, postos lado a lado em cima do balcão. Comeu um, como sempre fazia. Os outros botou na vitrine, os mais vistosos na frente, pra atrair a atenção. Ficou por lá esperando os clientes, mesmo sabendo que ninguém viria. Páscoa pra ele era isso, criar e vender ovos de chocolate.  O que não tinha jeito, não tinha jeito. A parte dele ele ia fazer.

8.4.20

silêncio

Bento vivia em cidade grande, levava vida corrida, ganhava uma fortuna. Ia tudo muito bem, mas Bento se cansou daquela vida. Parando pra pensar, não queria nem precisava de nada daquilo. Bento queria o silêncio, a natureza, a solidão. Na cidade, não conseguia estar sozinho, quieto, nem por um minuto. Mesmo desacompanhado, em casa, não se livrava dos barulhos da rua, das televisões, dos vizinhos. Resolveu abandonar aquilo tudo. Sentia um impulso de ficar sozinho, totalmente sozinho. Foi-se embora pro mato, instalou-se numa cabana abandonada, sem luz, sem conforto, e lá ficou. Fazia só o que queria, geralmente nada. Não tinha notícias de ninguém, não dava satisfação, era livre. Nunca se arrependeu, nunca teve um momento de tédio. Vivia assim há quinze anos e nem pensava em voltar. O pouco contato que tinha com a civilização acontecia esporadicamente, de forma rápida, só por extrema necessidade. Foi o caso naquele dia. Caminhou por horas até chegar à cidade, preparando-se para enfrentar gente, barulho, poluição, tudo aquilo que detestava. Não foi o que encontrou. Chegou a uma cidade fantasma, sem uma única pessoa na rua. Tudo estava em silêncio, sem movimento, sem vida. Bento não entendeu. Teriam todos decidido virar eremitas também? Impossível, numa cidade com tantos habitantes. Pensou numa guerra, mas as casas estavam todas de pé. Pensou até no apocalipse, mas nesse caso ele mesmo não teria escapado. Afinal, viu num muro uma pichação que dizia #fiqueemcasa. Pelo visto, era o que a cidade inteira estava fazendo. Não sabia o motivo e nem se interessou. Já que estavam todos trancados em casa, resolveu explorar a cidade vazia, toda dele. Andou pelas ruas desertas, coisa impossível em outros tempos, mesmo de madrugada. Tudo fechado, calado, apagado. Achou bonito. Chegou a pensar que daquele jeito poderia ficar morando por ali. Depois, reconsiderou. Uma cidade deserta está morta e ele queria vida. Queria a cabana, o verde, os barulhos do mato, era aquele o seu lugar. De toda forma, não teve pressa em voltar. Quis aproveitar mais um pouco a insólita quietude, que provavelmente não voltaria a presenciar. Resolveu dormir na rua abandonada e sair de manhã. Mal se acomodou, as luzes da cidade se acenderam de uma vez só e uma multidão apareceu nas janelas, explodindo em aplausos e gritos de agradecimento. Foi um assombro. Foi como se a cidade tivesse lhe pregado uma peça. Primeiro, deserta e silenciosa. Depois, acesa e escandalosa. Partiu na mesma hora, noite adentro mesmo. Achou melhor não ficar pra ver o que mais aquela cidade ia aprontar.

1.4.20

tomara

O que eu mais queria era parar de ir pra escola e sair pra passear todos os dias. Nunca conseguia. Quando acontecia de não ir, ficava em casa mesmo. Agora, parei de ir pra escola, mas como sempre não pude sair pra fazer nada. Tudo bem, não quero mais ir pra lugar nenhum. Estou achando muito bom ficar em casa, ainda mais agora que a mamãe está me deixando fazer tudo que eu quero. Eu posso ver youtube e ipad o tanto que eu quiser, o dia todo até. Posso comer de tudo também, não tem mais aquilo de comer sobremesa só depois de almoçar, comer chocolate só no final de semana, nada disso. Pelo contrário, a mamãe agora faz um potão de brigadeiro todos os dias e comemos tudo, ela até mais do que eu. Também não tenho mais hora pra dormir, não preciso tomar banho todos os dias, nem guardar os brinquedos depois de brincar. Às vezes, eu exagero, faço muita bagunça. A mamãe reclama que não está conseguindo trabalhar e às vezes até chora. Nessas horas, eu paro porque fico com pena dela e também porque quando ela chora fica muito chata e nem quer brincar comigo depois. A mamãe me contou que eu vou ficar vários dias sem ir pra escola. Achei bom, mas estou torcendo pra na verdade não ter que ir nunca mais. A mamãe me disse coitadinho, vai ficar tanto tempo sem ir pra escola, sem ver os amiguinhos, sem passear. Achei engraçado a mamãe ficar com pena porque eu não vou pra escola, mas não falei nada. Também achei melhor não falar que eu não quero mais passear porque descobri que ficar em casa é muito mais legal e daqui pra frente quando eu matar aula nem vou reclamar de não poder sair. Estou achando bom isso de ela ficar com peninha de mim. Vai ver que é por isso que ela está deixando eu fazer tudo que eu quero. A mamãe falou que eu não vou pra escola por causa do tal vírus que fica toda hora passando na TV. Não entendi por que eu não posso ir usando máscara que nem todo mundo na rua, mas fiquei quieto. A mamãe me explicou que esse vírus é uma bolinha com uns ganchinhos que quando gruda na gente dá doença e pode dar até morte. Preferia que ela não tivesse explicado nada. Agora, quando eu vou dormir fico com medo do monstro dos ganchinhos debaixo da minha cama. Tenho vontade de levantar e ir pro quarto da mamãe, mas fico achando que ele vai morder meu pé e desisto. Também penso em gritar a mamãe, mas fico com medo de ele ouvir, subir na minha cama e me atacar.  Essa parte do dia não é boa, mas depois vem a manhã e fica tudo bem de novo. A única coisa que eu não estou gostando muito é que a mamãe fica quase o tempo todo trabalhando e não me dá muita atenção, mas mesmo assim é bom ficar em casa com ela. Não preciso mais ficar esperando a mamãe chegar, ela já está aqui o tempo todo. Ela não está gostando muito, diz que fica istissada. Eu não sei o que isso quer dizer, mas acho que não deve ser coisa boa, senão ela não chorava. Estou torcendo pra mamãe parar de trabalhar e ficar o dia todo fazendo só o que quiser, que nem eu. Quem sabe assim ela começa a gostar e a gente acaba ficando aqui pra sempre, sem nunca mais ter que sair. Tomara.