4.7.20

máscaras

O desejo de uma vida toda estava se realizando. Desde pequena, sonhava com o Carnaval de Veneza. Agora, preparava-se para finalmente sair pela cidade, tomando parte na sóbria folia. Via Veneza pela janela enquanto se vestia. Amava as ruelas cercadas pelas águas, as gôndolas, as pontes. Sempre se imaginava andando por lá, sonhava até. Sempre no Carnaval, quando tudo era mais vivo e colorido. Queria caminhar pelas ruas, ser admirada, exibir a fantasia. Queria se fartar com o esplendor das fantasias dos demais foliões. Com as máscaras, principalmente, as máscaras. Já se via rodopiando pelos salões, com seu vestido vermelho e dourado, coberto de laços e babados. E a máscara, claro, a máscara. Tinha sido difícil escolher a sua. Nunca quis as brancas de porcelana, feitas em série. Queria uma máscara feita a mão, única. Não se preocupava com preço. Afinal, era Carnaval, era Veneza. Oscilava entre as que cobriam só os olhos e as que escondiam o rosto todo. Hesitava entre as colombinas, bizantinas, misteriosas, narigudas, aristocráticas, cômicas. Eram muitas, todas fascinantes. Acabou encomendando uma dourada com pedrarias e plumas volumosas que emolduravam a cabeça. Vestiu-a. Olhou uma última vez pela janela, caminhou até a porta, parou. Quis aproveitar um pouco mais a excitação, a alegria antecipada. Veneza estava logo ali. Pôs a mão na maçaneta, não chegou a girar. Ouviu ao longe um som irritante, cada vez mais alto. Acabou-se o sonho. Acordou do outro lado do mundo, atrasada para o trabalho. Arrumou-se, pôs a máscara da vida real, o grosseiro uniforme da pandemia, e saiu. Viu-se cercada por mascarados, mas não viu folia. Veneza ficava para outro dia.

25.6.20

vingança

Muitos casais se desentenderam na quarentena. Não eles. Os meses presos em casa fizeram bem à dupla. Ficaram mais unidos, mais carinhosos, mais felizes. Nem os três filhos atrapalhavam o romance. Davam trabalho, principalmente pra ela, que era quem cuidava de tudo na casa, mas não se importava. Passava o dia agradando o marido, que adorava os paparicos. Dizia que ela era a mulherzinha mais linda, a que ele sempre quis. Na quarentena, ela não decepcionou. Ao contrário, redobrou os cuidados. Mantinha a casa limpa, os filhos sossegados, o marido satisfeito. O auge da felicidade era quando ele dizia que não entendia por que os amigos reclamavam tanto da quarentena, que por ele poderia passar a vida ali com ela, sem nem sair de casa. Não entendia porque não imaginava o quanto ela se esforçava pra manter tudo em ordem o tempo todo. E era isso mesmo que ela queria: que ele nem percebesse, que a vida parecesse naturalmente perfeita. Ficava toda orgulhosa também quando ele elogiava o zelo dela com as medidas de segurança. Higienizava tudo, fabricava máscaras, lavava as mãos das crianças várias vezes por dia, passava álcool nas compras, abria as janelas. O marido às vezes tinha que sair. Quando voltava, ela parecia uma máquina: pegava as roupas e a máscara dele, botava tudo pra lavar, punha a comida pra esquentar, passava álcool no celular. Foi cumprindo o procedimento que viu a mensagem na tela bloqueada: hoje foi ótimo, já estou com saudade. E assim descobriu que estava sendo traída. Em plena pandemia. Dizer que perdeu o chão, que o mundo caiu, que não conseguiu respirar, é pouco. Não há palavras para o que ela sentiu. Estava dando o seu melhor em casa, fazendo o marido de rei, e estava sendo traída. Ela se acabando em casa e ele se esbaldando na rua. Ela expulsando o vírus de casa e ele arriscando trazer de volta, da boca da outra. Teve raiva da própria ingenuidade, mas teve mais ódio do marido. Estourar a bolha da felicidade no meio da quarentena era o que de mais traiçoeiro ele poderia fazer. Planejou mil vinganças. Lembrou da mulher que botou vidro na comida, da que arranhou os discos, da que fez bom uso de uma tesoura afiada. Pensou em fazer tudo junto, mas achou pouco. Aquelas eram vinganças de dias normais. A dela seria uma vingança de tempos apocalípticos. Tinha que ser épica. Depois de uma ou outra ideia mirabolante, mas ainda insuficiente, decidiu que o melhor era não fazer nada. Foi se deitar no meio da tarde, disse que estava indisposta. Na hora do jantar, continuou se sentindo indisposta. Disse ao marido que não se preocupasse, qualquer comidinha que ele fizesse pra ela estaria bem. No dia seguinte, continuava prostrada, mas o marido não precisava se preocupar, avisou. Era bobagem, logo passava. Mas não passou. Chegou a hora do café, de dar banho nos filhos, de acompanhar as aulas no computador, de ajudar a fazer os deveres, de cozinhar o almoço, de varrer a casa, de jantar de novo, de botar pra dormir. Ela nem se moveu. E foi assim no outro dia e no outro e no outro. Coisa boa que era passar o dia deitada, sem fazer rigorosamente nada. Ficava só apreciando os esforços do marido, o maridinho mais lindo, o que ela sempre quis. Dava gosto de ver como as tarefas domésticas o exauriam. Os filhos pequenos davam trabalho, mas o pior era a mulher. Fazia pedidos o dia todo, não dava um segundo de paz. Ele nem se atrevia a reclamar. Além de doente, a mulher vinha fazendo aquilo tudo há anos, sem reclamar, e ainda estava sendo traída, sem saber. Às vezes, ele dizia que ia sair pra comprar cigarros e ela nem ligava. Trabalhando daquele jeito, não restava energia pra amante. De fato, em dois minutos o marido estava de volta. Vida de dono de casa era puxada, ele mal se aguentava em pé. Já vida de doente era a melhor que tinha. Ela só lamentava ter demorado tanto pra perceber. 

16.6.20

quadrilhas

É junho, mas não há o que festejar. Neste ano, nada de música, fogueira, maçã do amor. Mas se festa junina não vai ter, quadrilha não vai faltar. Puxando a fila, o governador diz que fica todo mundo em casa, tudo fechado, é uma ordem. Aí, vem o prefeito e resolve fazer uma elaborada abertura gradual. Igreja abre logo de cara, sem restrições. Lojas de decoração também, vai saber por quê. Praia pode, mas só pra surfistas. Restaurantes, só pra comer na varanda. Shoppings, só praça de alimentação, em esquema takeaway. Não entendi quem vai take, se a clientela não pode entrar, mas deve ser burrice minha. Nas semanas seguintes, vai mudando tudo, numa verdadeira dança das cadeiras. Shopping só pra lojas, praia só no calçadão e surfista vai comer em casa. Quando todo mundo já decorou o esquema, vem o governador e diz que não é nada disso, fica tudo como antes, ninguém entra, ninguém sai. Aí, o próprio governador muda de ideia e resolve que abre, sim, abre tudo e de uma vez só. Parece mesmo quadrilha: olha a cobra, é mentira! De repente, vem o juiz, que não estava na história, e manda todo mundo ficar onde está, não abre mais nada, quem saiu, volta pra casa. Não demora muito, vem o Tribunal mostrar quem manda e libera tudo, porteiras abertas, palavra final. Olha a chuva, é mentira! E os cariocas, que já estão fartos de ficar trancafiados em casa, dedicados a achatar bem achatada a tal da curva, esperando o pico que nunca vem, têm que perder tempo e paciência acompanhando o vaivém. Mais do que a previsão do tempo, quem resolve sair de casa agora tem que consultar a regra em vigor. Mesmo quem não vai sair fica louco com isso. O carioca é antes de tudo um forte, mas pra tudo tem limite. Mas se fosse só isso, tudo bem, que briga de político e juiz, com o povo no fogo cruzado, volta e meia tem por aqui. Agora, a OMS, em plena pandemia, não dá pra tolerar. A OMS não para de jogar chuva e cobra pra cima da gente e depois diz que é mentira. Primeiro, disse que o vírus estava sob controle, depois, que era  uma possível emergência internacional, e quando finalmente admitiu que era uma pandemia das boas, todo mundo já estava cansado de saber. Daí pra frente, não nos deu mais sossego. É pra usar máscara, não é pra usar máscara, é pra usar máscara de novo. O remédio não serve, o remédio talvez sirva, o remédio definitivamente não serve, o remédio talvez sirva de novo. Os assintomáticos transmitem, os assintomáticos não transmitem, os assintomáticos talvez transmitam de novo. A OMS mais parece um locutor alucinado, jogando a quadrilha de um lado pro outro, sem parar. Não tem quem consiga dançar assim, desbaratina qualquer um. O cidadão fica isolado em casa, perde emprego, não ganha um tostão, e diariamente tem que ouvir que aquilo que era ontem, hoje não é mais, mas  amanhã pode ser que seja de novo. Anarriê! A cada erro, a OMS se defende dizendo que a doença é nova e ninguém sabe de nada. Se não sabe, não devia falar, ainda mais com pompa e convicção. Não que a esta altura alguém ainda acredite no que a OMS diz, mas é constrangedor ver um órgão que deveria se preocupar também com a saúde mental das pessoas causar tanta perturbação. Seria melhor mandar logo cada um fazer o que quisesse e salve-se quem puder. Termino em ritmo de quadrilha, que aliás é o que não falta  no saqueado Rio de Janeiro: cariocas que não gostam do prefeito, que não gosta do governador, que não gosta do presidente, que não gosta da OMS, que não gosta de ninguém. Só pode ser.

santo

Lá na roça, todo domingo tem missa na capelinha. Os fiéis seguem em procissão pela beira da estrada, cantando as ladainhas com voz estridente. Rezam com fé, uns pra agradecer, outros só pra pedir mesmo. Nos últimos tempos, pasaram a pedir mais do que a agradecer, mortos de medo do bicho que mata. Depois que dois casos apareceram numa cidadezinha próxima, foi um tal de fazer promessa, de beijar pé de santo, de acender vela, que só vendo. Chegaram ao ponto de botar máscara no santo, durante a missa solene. Bem se sabe que pra alcançar a graça pedida não basta bajular: é preciso também fazer o santo sofrer. Santo Antônio é um que fica de cabeça pra baixo até conceder marido. O santo da capelinha foi condenado a sufocar com a máscara até afastar o perigo. O plano era bom, mas o menino não aguentou. Não conseguiu dormir, pensando no santo se debatendo, asfixiado.  Madrugada alta, foi até a capela prestar socorro. Enfrentou bem o medo do escuro, mas na hora de tirar a máscara faltou coragem. Teve receio de ser descoberto e acabar castigado também. Castigo que ia ser de vara, bem pior que o do santo. Acabou fazendo só um buraquinho, que também não tinha sentido ir até lá e não ajudar o santo. Na missa seguinte, os fiéis viram a máscara furada e foi um alvoroço. Era um milagre, era a prova de que ninguém ali ia sofrer de falta de ar. O caso correu longe e juntou foi gente pra ver o santo milagreiro. Era uma romaria sem fim, uma montoeira de fiéis, das cidades próximas e distantes. Foi só enganação. Caiu todo mundo doente, tivesse ido à capela ou não. Ficou claro que de milagreiro o santo não tinha nada, era um impostor. Acabou destituído, dando lugar a uma Nossa Senhora vistosa, que essa sim não falha. Povo lá é devoto, mas não perdoa. Ou bem o santo entrega o milagre, ou vai pra lata de lixo. O falso milagreiro não escapou. 

24.5.20

basta

Sou branca, nesta vida. Em outras, se existiram, devo ter sido negra. Volta e meia penso assim, depois mudo de ideia. Não é preciso ser da mesma cor pra sentir a dor do outro, pra me indignar, pra me chocar. Eu sinto forte, muito forte, a dor do preconceito. Por isso, hoje não vou escrever um texto como os outros, uma variação sobre a quarentena. Até porque pouco importa se escrevo antes, durante ou depois da pandemia. O que importa, sim, é que escrevo em 2020. Em 2020, deixo de escrever um conto porque adolescentes trocaram mensagens racistas num grupo de WhatsApp da escola. Mensagens tão baixas, tão nojentas, que me impedem de escrever sobre outra coisa. Atitudes racistas acontecem o tempo todo, eu sei, mas realmente nunca imaginei que fosse ler o que li. É mais do que preconceito, é falta de coração, de empatia, de respeito a todos, negros ou não. Eu, branca, me senti agredida. Em 2020, deixo de escrever meu conto porque não tenho como, diante do que li, escrever ficção. Porque não tenho como inventar personagens se só me vêm à cabeça o rosto da menina, lindo e nítido, e os dos adolescentes, massas disformes e desprezíveis. Deixo hoje de escrever meu conto pra registrar que em 2020 adolescentes de uma boa escola da Zona Sul, que deveriam ser pessoas educadas e decentes, pensam o que pensam, sentem o que sentem e têm coragem de escrever e divulgar. Não têm vergonha, não têm noção. Devem achar natural, repetem o que ouviram de seus pais, avós, bisavós, numa corrente estúpida de preconceito que até hoje não se quebrou. É provável, mas não é desculpa. O mundo está aí pra ensinar. É 2020 e esses quase homens ainda não aprenderam. É imperdoável, é crime. Que gente é essa? Até onde isso vai? Estamos em 2020. Já não basta? 

16.5.20

dieta

De uma coisa não posso reclamar nesta quarentena: o cardápio. Decidi que não vou me privar, basta o resto. Vou comer e comer e comer. Do bom e do melhor, o que no meu caso significa pipoca e chocolate aos montes, bolos dos mais variados sabores e coberturas, sorvete caseiro, batata frita e basicamente tudo mais que engorda e aumenta o colesterol. Todos os dias, várias vezes por dia. Sem medir as consequências, sem subir na balança, sem ligar pra gordurinha safada que já começou a se instalar nos meus quadris. Não comerei da alface a verde pétala, nem da cenoura as hóstias desbotadas, já dizia o poeta. Estou com ele, ao menos nestes tempos de quarentena. Antes, era só alface, cenoura, legumes em geral e uma franguinho branco, sem gosto, sem sal, à moda hospitalar. Agora, mudei de estrofe: Morrerei feliz do coração, por ter vivido sem comer em vão. Um sábio, esse poeta. Por ora, sigo assim, comendo a valer. Quando acabar a quarentena, acaba a festa. Vai ser rigor absoluto, regime militar. Ops, escapuliu. Aqui, não se fala em política. Mais açúcar, por favor.

10.5.20

eras

Nós, os da era pré-internet, jamais saberemos o que é nascer e crescer num mundo duplicado, real e virtual. Nós sequer entendemos que para os internéticos não existe distinção entre real e virtual, é tudo um mundo só. O que acontece em um é imediatamente compartilhado no outro. Se não for, é como se não tivesse acontecido. Desconfio que para os internéticos também não exista distinção temporal. O que já passou fica gravado, pode ser presente de novo. E o que é presente não vira passado, é postado, é jogado para frente, é eternidade. As crianças internéticas já crescem sabendo que uma versão pequena delas mesmas mora nos celulares, repetindo como macaquinhas incansáveis tudo o que a versão grande faz. Nós, os de outra era, podemos imaginar, mas jamais saberemos, jamais sentiremos, o que é isso. De tudo, é o que mais me intriga. Mas paro por aqui porque não vim pra filosofar. Vim pra dizer que Nina quer morar na internet. Nina, enfurecida porque o sinal está fraco e o desenho nunca carrega, diz que quer morar na internet. Não é força de expressão. Nina é internética, está falando sério. Deve achar que a internet é um planeta de verdade, uma nuvem encantada em que moram os personagens dos desenhos, em que tudo pode acontecer, um país das maravilhas no qual o sinal está sempre forte e a bateria nunca acaba. Vai ver que é mesmo, ela deve saber mais do que eu. Seja como for, gosto da ideia de morar na internet. Queria poder morar lá, queria que todos nós pudéssemos. Entraríamos na página mundosempandemia.com e lá viveríamos felizes para sempre. Como nos contos de fadas, que sempre terminam bem, que atravessam as eras.

3.5.20

aviões

Pequena, o passeio preferido era a ida ao aeroporto para ver os aviões. Passava horas hipnotizada, com a cara colada no vidro, quase sem piscar. Mantinha o olhar fixo no céu, esperando ver ao longe um pontinho pequeno se aproximando. Apostava com os irmãos quem reconheceria primeiro a companhia aérea do avião que chegava. Gostava também de acompanhar os aviões na pista, tentando adivinhar qual decolaria primeiro.
Crescida, virou fiscal de bagagem. Chances de ver os aviões tinha poucas, mas gostava de estar no aeroporto, de ver o vaivém de viajantes, de sentir a agitação. O aeroporto era enorme, de corredores intermináveis. Muitos portões, muitas lojas, muita gente. Diariamente, uma multidão zanzava de um lado pro outro e os aviões se amontoavam na pista, aguardando sua vez de decolar. Isso, antes da quarentena. Agora, a coisa é outra. Os corredores estão lá, mas desertos. As lojas estão lá, mas quase todas fechadas. Os passageiros estão lá, mas um ou outro só. Não tem fila na frente dos portões, não tem disputa pelos bancos, não tem confusão. Na maior parte do tempo, ela não tem ninguém pra fiscalizar. Pode fazer o que quiser, pode ficar por conta dos aviões. Não tem muito o que ver, é verdade, mas não se importa. Passa horas de frente pro janelão de vidro, tentando enxergar um pontinho voando no céu. Como se não existisse mais nada, como se o apocalipse não estivesse acontecendo. Só ela, a janela e, com sorte, algum avião.

23.4.20

os miseráveis

Sempre fui atraída por ele. Amava o peso, o número de páginas, o desenho da capa. Comecei a tentar lê-lo pequena. Fracassei, era demais pra uma criança. Fui fazendo tentativas ao longo dos anos.  Lia vinte páginas, desistia. Tempos depois, começava de novo. Lia cinquenta, cem páginas, desistia. Até que, aos treze, li do início ao fim. Passei a amar também a história, além do peso, do tamanho, da capa. Por ter tentado muitas vezes, li mais o início do que o resto. Provavelmente por isso, e também por ser criança, sou fascinada pela parte inicial, sobretudo pela cena da menina maltratada ganhando uma boneca de presente. Do meio pro fim, vou me lembrando menos, o que é bom, pois acabo sempre relendo. Li já algumas vezes, em português, em francês, sempre em edições diferentes. Certamente, vou ler outras mais e continuar a acumular exemplares. Não resisto ao título. O peso, o número de páginas, já não me impressionam mais. Os livros, sim, me fascinam mais e mais. Gosto da diversidade de formas, tamanhos, capas, lombadas, títulos. Volta e meia, privada de livrarias pela quarentena, fico sentada de frente pra estante, olhando meus livros, suas capas, seus títulos, sua disposição nas prateleiras. Hoje especialmente, sendo Dia Mundial do Livro. Em breve, espero, vou voltar a passear entre as mesas das livrarias, rodeada de livros. É como imagino o paraíso.

17.4.20

cristo

O Cristo, do alto, olha a cidade cheia de gente e fica de lá pensando que diabos esse povo pensa que está fazendo. O Cristo sabe que deveriam estar em casa. Não porque tenham lhe contado, mas porque de outro modo não estaria fechado, e também porque, sendo Cristo, sabe de tudo. O Cristo se pergunta quanto tempo mais vai ficar sozinho, sem devotos, sem turistas. Isso ele não sabe e desconfia que nem Deus saiba. O que ele sabe, não por ser Cristo, mas por não ser idiota, é que quanto mais gente se amontoar, mais vai demorar pra tudo passar. O Cristo vê dias mais e menos movimentados, mas praia vazia mesmo, lagoa vazia de todo, isso ainda não viu. Sabe que há quem diga que vai com cuidado, mantendo distância dos outros, mas pensa que se forem todos por esse caminho, não vai ter espaço livre pra ninguém. Sabe que alguns se acham, e de fato são, imunes ao vírus, mas se espanta que não pensem nos outros. De tudo, o que deixa o Cristo mais danado é ver os velhinhos andando faceiros na rua, como se o drama não fosse com eles. Nunca pensou que as velhinhas carolas fossem demonstrar tanta desconsideração pelas próprias vidas e pela dele próprio, obrigado a permanecer sozinho na corcova do morro, por conta da teimosia alheia. O Cristo tem visto nos últimos tempos mais e mais gente fazendo festa na rua, dançando, se abraçando, fazendo pouco do vírus que está ali, de boca aberta, pronto pra dar o bote. Entende o povo, sabe que ficar sozinho não é fácil. Até ele, mesmo com a vista privilegiada, tem dificuldade em ficar isolado. Até ele fica tentado a descer de seu pedestal e se misturar aos outros nas ruas. Pensa nisso, fantasia, mas jamais faria. O sacrifício é necessário, ele sabe. Nem todos sabem, ele entende. Não julga, perdoa. Passa as noites em claro, vigiando a cidade, com os braços abertos sobre nós. Abençoa a todos, cumpre seu papel, esperando pacientemente que nós também façamos a nossa parte. Pra que ele possa voltar a ter gente a seus pés, lá no alto do morro.

11.4.20

páscoa

De todas as festas, a preferida dele era a Páscoa. Tinha fascínio por chocolate, desde pequeno. Adorava entrar nas lojas e ver os tetos brilhando com ovos de Páscoa de diferentes cores e tamanhos. Ia comendo ao longo de semanas os que ganhava, um pedacinho por vez, para durar mais. Não tinha dúvida da profissão que seguiria. Desde sempre quis ser chocolatier, ou chocolateiro, como preferia dizer. Sua loja de chocolates era a melhor da cidade, com uma variedade inesgotável de produtos. Vendia bombons, barras, bolos, sorvetes, tudo que pudesse ser feito com chocolate. A especialidade, claro, eram os ovos da Páscoa, que mais uma vez vinha chegando. A deste ano, no entanto, não ia ser como as outras. A cidade inteira estava em isolamento, por conta da pandemia. A loja nem abriria, como já acontecia há semanas. Nenhum ovo seria vendido, nenhum centavo seria recebido. Ia ser Páscoa, mas não ia ter festa, não ia ter criança hipnotizada pelos ovos, sem conseguir escolher, não ia ter gente provando os sabores novos, elogiando, nada. Nem por isso o chocolateiro desistiu de fabricar seus ovos. Fez vários, um mais bonito que o outro. Ficou um bom tempo sentado, apreciando suas criações. Tão bom quanto fazer era ficar depois olhando os ovos, postos lado a lado em cima do balcão. Comeu um, como sempre fazia. Os outros botou na vitrine, os mais vistosos na frente, pra atrair a atenção. Ficou por lá esperando os clientes, mesmo sabendo que ninguém viria. Páscoa pra ele era isso, criar e vender ovos de chocolate.  O que não tinha jeito, não tinha jeito. A parte dele ele ia fazer.

8.4.20

silêncio

Bento vivia em cidade grande, levava vida corrida, ganhava uma fortuna. Ia tudo muito bem, mas Bento se cansou daquela vida. Parando pra pensar, não queria nem precisava de nada daquilo. Bento queria o silêncio, a natureza, a solidão. Na cidade, não conseguia estar sozinho, quieto, nem por um minuto. Mesmo desacompanhado, em casa, não se livrava dos barulhos da rua, das televisões, dos vizinhos. Resolveu abandonar aquilo tudo. Sentia um impulso de ficar sozinho, totalmente sozinho. Foi-se embora pro mato, instalou-se numa cabana abandonada, sem luz, sem conforto, e lá ficou. Fazia só o que queria, geralmente nada. Não tinha notícias de ninguém, não dava satisfação, era livre. Nunca se arrependeu, nunca teve um momento de tédio. Vivia assim há quinze anos e nem pensava em voltar. O pouco contato que tinha com a civilização acontecia esporadicamente, de forma rápida, só por extrema necessidade. Foi o caso naquele dia. Caminhou por horas até chegar à cidade, preparando-se para enfrentar gente, barulho, poluição, tudo aquilo que detestava. Não foi o que encontrou. Chegou a uma cidade fantasma, sem uma única pessoa na rua. Tudo estava em silêncio, sem movimento, sem vida. Bento não entendeu. Teriam todos decidido virar eremitas também? Impossível, numa cidade com tantos habitantes. Pensou numa guerra, mas as casas estavam todas de pé. Pensou até no apocalipse, mas nesse caso ele mesmo não teria escapado. Afinal, viu num muro uma pichação que dizia #fiqueemcasa. Pelo visto, era o que a cidade inteira estava fazendo. Não sabia o motivo e nem se interessou. Já que estavam todos trancados em casa, resolveu explorar a cidade vazia, toda dele. Andou pelas ruas desertas, coisa impossível em outros tempos, mesmo de madrugada. Tudo fechado, calado, apagado. Achou bonito. Chegou a pensar que daquele jeito poderia ficar morando por ali. Depois, reconsiderou. Uma cidade deserta está morta e ele queria vida. Queria a cabana, o verde, os barulhos do mato, era aquele o seu lugar. De toda forma, não teve pressa em voltar. Quis aproveitar mais um pouco a insólita quietude, que provavelmente não voltaria a presenciar. Resolveu dormir na rua abandonada e sair de manhã. Mal se acomodou, as luzes da cidade se acenderam de uma vez só e uma multidão apareceu nas janelas, explodindo em aplausos e gritos de agradecimento. Foi um assombro. Foi como se a cidade tivesse lhe pregado uma peça. Primeiro, deserta e silenciosa. Depois, acesa e escandalosa. Partiu na mesma hora, noite adentro mesmo. Achou melhor não ficar pra ver o que mais aquela cidade ia aprontar.

1.4.20

tomara

O que eu mais queria era parar de ir pra escola e sair pra passear todos os dias. Nunca conseguia. Quando acontecia de não ir, ficava em casa mesmo. Agora, parei de ir pra escola, mas como sempre não pude sair pra fazer nada. Tudo bem, não quero mais ir pra lugar nenhum. Estou achando muito bom ficar em casa, ainda mais agora que a mamãe está me deixando fazer tudo que eu quero. Eu posso ver youtube e ipad o tanto que eu quiser, o dia todo até. Posso comer de tudo também, não tem mais aquilo de comer sobremesa só depois de almoçar, comer chocolate só no final de semana, nada disso. Pelo contrário, a mamãe agora faz um potão de brigadeiro todos os dias e comemos tudo, ela até mais do que eu. Também não tenho mais hora pra dormir, não preciso tomar banho todos os dias, nem guardar os brinquedos depois de brincar. Às vezes, eu exagero, faço muita bagunça. A mamãe reclama que não está conseguindo trabalhar e às vezes até chora. Nessas horas, eu paro porque fico com pena dela e também porque quando ela chora fica muito chata e nem quer brincar comigo depois. A mamãe me contou que eu vou ficar vários dias sem ir pra escola. Achei bom, mas estou torcendo pra na verdade não ter que ir nunca mais. A mamãe me disse coitadinho, vai ficar tanto tempo sem ir pra escola, sem ver os amiguinhos, sem passear. Achei engraçado a mamãe ficar com pena porque eu não vou pra escola, mas não falei nada. Também achei melhor não falar que eu não quero mais passear porque descobri que ficar em casa é muito mais legal e daqui pra frente quando eu matar aula nem vou reclamar de não poder sair. Estou achando bom isso de ela ficar com peninha de mim. Vai ver que é por isso que ela está deixando eu fazer tudo que eu quero. A mamãe falou que eu não vou pra escola por causa do tal vírus que fica toda hora passando na TV. Não entendi por que eu não posso ir usando máscara que nem todo mundo na rua, mas fiquei quieto. A mamãe me explicou que esse vírus é uma bolinha com uns ganchinhos que quando gruda na gente dá doença e pode dar até morte. Preferia que ela não tivesse explicado nada. Agora, quando eu vou dormir fico com medo do monstro dos ganchinhos debaixo da minha cama. Tenho vontade de levantar e ir pro quarto da mamãe, mas fico achando que ele vai morder meu pé e desisto. Também penso em gritar a mamãe, mas fico com medo de ele ouvir, subir na minha cama e me atacar.  Essa parte do dia não é boa, mas depois vem a manhã e fica tudo bem de novo. A única coisa que eu não estou gostando muito é que a mamãe fica quase o tempo todo trabalhando e não me dá muita atenção, mas mesmo assim é bom ficar em casa com ela. Não preciso mais ficar esperando a mamãe chegar, ela já está aqui o tempo todo. Ela não está gostando muito, diz que fica istissada. Eu não sei o que isso quer dizer, mas acho que não deve ser coisa boa, senão ela não chorava. Estou torcendo pra mamãe parar de trabalhar e ficar o dia todo fazendo só o que quiser, que nem eu. Quem sabe assim ela começa a gostar e a gente acaba ficando aqui pra sempre, sem nunca mais ter que sair. Tomara. 

27.3.20

o que temos

Maria sempre foi apaixonada por Felipe, desde criança. Felipe não percebia, não dava bola. Maria sonhava com o dia em que Felipe finalmente iria olhar pra ela, mas esse dia não vinha. Um dia, o dia chegou e Felipe finalmente chamou Maria pra sair. Marcaram pra noite seguinte e Maria não sabia nem o que fazer com tanta alegria, com tanta expectativa. O encontro aconteceu e Maria constatou que Felipe não era quem ela tinha idealizado. Era mais, muito mais, era o amor da vida dela. Felipe também caiu de amores, viu que não queria passar mais um único dia longe de Maria. E foi tanto beijo, tanto abraço, tanto olho no olho, tantas juras de amor, que parecia que ia ser assim mesmo, os dois juntos todos os dias, pra sempre. Aí, veio a quarentena, logo no dia seguinte. Justo agora que tudo tinha dado certo, que Felipe tinha se encantado, que ia ser só felicidade, o mundo  parou. Maria estava disposta a ignorar a tal  quarentena, mas Felipe não concordou. Maria chorou, implorou, mas Felipe não cedeu. O momento era de isolamento, não tinha jeito. Maria não se conformava, caía em prantos quando conversava com Felipe pelo facetime, tão lindo, tão longe. Sofria, sofria, morria de medo de Felipe desencantar. Felipe não entendia. Felipe, afinal, não tinha passado a vida esperando por Maria. Por que isso, Maria, pra que essa agonia? Teremos tempo, setembro está logo ali. Mas setembro não estava ali, não, setembro estava lá longe. Tem tanta avó longe de neto, tanto homem longe de mulher,  Felipe argumentava. Se eles aguentam, aguentamos também. Maria não se sensibilizava. A dor alheia não diminuía a dela própria. Felipe tentava consolá-la. Temos a internet, Maria, podemos nos ver, conversar todos os dias. Mas pra Maria internet não era consolo. Beijo por celular não vale nada, que celular não tem boca, abraço por celular não vale nada, que celular não tem braço, não tem corpo, não tem cheiro, ela pensava. Maria está coberta de razão. A vida pelo celular não vale nada. Mas é o que temos. 

25.3.20

vovó e a pandemia



Infelizmente, Vovó não viveu para ver estes tempos de pandemia. Uma pena, teria sido a glória. Vovó era uma visionária. Sempre desinfetou detidamente as compras do supermercado, embalagem por embalagem. Lavava de tudo, até banana. E olha que Vovó dizia que a banana era a fruta do Paraíso, pois segurando pela casca podia ser comida até com as mãos sujas. Dizia isso, mas mantinha controle higiênico rigoroso até sobre a fruta paradisíaca. Trocava os lençóis diariamente, deixava os sapatos na porta e assim que chegava em casa tomava banho e punha a roupa da rua pra lavar. Se tivesse vivido pra ver, ia ser difícil segurar Vovó em casa. Ia querer fiscalizar as ruas, dar conselhos para os passantes, mandar pra casa todos os velhinhos que aparecessem. Teria ciência dos riscos que correria, claro, mas argumentaria com razão que eles não eram páreo para ela. Não há como negar. Se todos fossem como a Vovó, essa coisa de vírus não teria chegado nem ali na esquina, muito menos se espalhado pelo mundo. Outra coisa que Vovó adoraria seria ficar grudada na televisão, acompanhando todas as notícias sobre a pandemia. Antenada, também passaria horas na internet e no whatsapp, trocaria mensagens o dia todo, se deleitaria com os vídeos e áudios com conselhos e relatos dramáticos. Não me entendam mal, Vovó não era alienada, tinha sentimentos, sofreria pelos outros. Mas pra ela, pessoalmente, este mundo limpo, desinfetado, obsessivamente higiênico, seria um sonho realizado. A neta confessa que pra ela também esse surto de higiene generalizado vem bem a calhar. A neta foi disciplinada pela avó, lava a mão vinte vezes por dia, ensaboa até esfolar, só abre porta de banheiro com um papelzinho ou com o cotovelo, mesmo dentro de casa, e por aí vai. Na vida normal, a neta esconde tudo isso, tem noção do ridículo. Já na paranoia, pode ser quem realmente é, recebe até elogios por seguir as recomendações médicas à risca, quem diria. Esse é o lado bom do drama. O lado ruim é o drama em si, claro, além dessa saudade tão grande da Vovó. 

22.3.20

novelas

Criança, papai não me deixava ver novelas. Via escondido, esticava o olho pro quarto da tia quando passava na porta, prestava atenção nos comerciais, ia acompanhando assim, como dava. Olhando pra trás, era tudo besteira, pura ingenuidade. Mal sabia papai que rumo as novelas iriam tomar. Do jeito que está, nem adulto pode ver mais. Ou do jeito que estava, nem sei como está agora porque há anos parei de acompanhar. Mas não parei de respeitar. Faz parte da cultura, faz parte da vida da gente, é coisa de brasileiro, produto nacional. Pois agora fico sabendo que as novelas vão parar. Logo agora que a mocinha finalmente ia beijar o mocinho, que a mãe ia fazer as pazes com o filho, que o assassino ia ser descoberto, que o final ia ser feliz. Não vai ter mais nada disso, vai ser jogo interrompido, história sem fim. Veio o vírus, as novelas vão parar. Claro, já parou trabalho, já parou escola, já parou passeio, já parou de tudo, as novelas também têm que parar. Não devia me espantar, eu sei.  Mas é que novela é fantasia, é outro mundo, não é pra ser engolida pela vida real. Ou vai ver foram as novelas que engoliram a vida, sem aviso. Vai ver estamos agora presos numa, forçados a viver capítulo a capítulo, sem saber o final. Só nos resta torcer pra que venha logo e que seja feliz.