25.6.20

vingança

Muitos casais se desentenderam na quarentena. Não eles. Os meses presos em casa fizeram bem à dupla. Ficaram mais unidos, mais carinhosos, mais felizes. Nem os três filhos atrapalhavam o romance. Davam trabalho, principalmente pra ela, que era quem cuidava de tudo na casa, mas não se importava. Passava o dia agradando o marido, que adorava os paparicos. Dizia que ela era a mulherzinha mais linda, a que ele sempre quis. Na quarentena, ela não decepcionou. Ao contrário, redobrou os cuidados. Mantinha a casa limpa, os filhos sossegados, o marido satisfeito. O auge da felicidade era quando ele dizia que não entendia por que os amigos reclamavam tanto da quarentena, que por ele poderia passar a vida ali com ela, sem nem sair de casa. Não entendia porque não imaginava o quanto ela se esforçava pra manter tudo em ordem o tempo todo. E era isso mesmo que ela queria: que ele nem percebesse, que a vida parecesse naturalmente perfeita. Ficava toda orgulhosa também quando ele elogiava o zelo dela com as medidas de segurança. Higienizava tudo, fabricava máscaras, lavava as mãos das crianças várias vezes por dia, passava álcool nas compras, abria as janelas. O marido às vezes tinha que sair. Quando voltava, ela parecia uma máquina: pegava as roupas e a máscara dele, botava tudo pra lavar, punha a comida pra esquentar, passava álcool no celular. Foi cumprindo o procedimento que viu a mensagem na tela bloqueada: hoje foi ótimo, já estou com saudade. E assim descobriu que estava sendo traída. Em plena pandemia. Dizer que perdeu o chão, que o mundo caiu, que não conseguiu respirar, é pouco. Não há palavras para o que ela sentiu. Estava dando o seu melhor em casa, fazendo o marido de rei, e estava sendo traída. Ela se acabando em casa e ele se esbaldando na rua. Ela expulsando o vírus de casa e ele arriscando trazer de volta, da boca da outra. Teve raiva da própria ingenuidade, mas teve mais ódio do marido. Estourar a bolha da felicidade no meio da quarentena era o que de mais traiçoeiro ele poderia fazer. Planejou mil vinganças. Lembrou da mulher que botou vidro na comida, da que arranhou os discos, da que fez bom uso de uma tesoura afiada. Pensou em fazer tudo junto, mas achou pouco. Aquelas eram vinganças de dias normais. A dela seria uma vingança de tempos apocalípticos. Tinha que ser épica. Depois de uma ou outra ideia mirabolante, mas ainda insuficiente, decidiu que o melhor era não fazer nada. Foi se deitar no meio da tarde, disse que estava indisposta. Na hora do jantar, continuou se sentindo indisposta. Disse ao marido que não se preocupasse, qualquer comidinha que ele fizesse pra ela estaria bem. No dia seguinte, continuava prostrada, mas o marido não precisava se preocupar, avisou. Era bobagem, logo passava. Mas não passou. Chegou a hora do café, de dar banho nos filhos, de acompanhar as aulas no computador, de ajudar a fazer os deveres, de cozinhar o almoço, de varrer a casa, de jantar de novo, de botar pra dormir. Ela nem se moveu. E foi assim no outro dia e no outro e no outro. Coisa boa que era passar o dia deitada, sem fazer rigorosamente nada. Ficava só apreciando os esforços do marido, o maridinho mais lindo, o que ela sempre quis. Dava gosto de ver como as tarefas domésticas o exauriam. Os filhos pequenos davam trabalho, mas o pior era a mulher. Fazia pedidos o dia todo, não dava um segundo de paz. Ele nem se atrevia a reclamar. Além de doente, a mulher vinha fazendo aquilo tudo há anos, sem reclamar, e ainda estava sendo traída, sem saber. Às vezes, ele dizia que ia sair pra comprar cigarros e ela nem ligava. Trabalhando daquele jeito, não restava energia pra amante. De fato, em dois minutos o marido estava de volta. Vida de dono de casa era puxada, ele mal se aguentava em pé. Já vida de doente era a melhor que tinha. Ela só lamentava ter demorado tanto pra perceber. 

16.6.20

quadrilhas

É junho, mas não há o que festejar. Neste ano, nada de música, fogueira, maçã do amor. Mas se festa junina não vai ter, quadrilha não vai faltar. Puxando a fila, o governador diz que fica todo mundo em casa, tudo fechado, é uma ordem. Aí, vem o prefeito e resolve fazer uma elaborada abertura gradual. Igreja abre logo de cara, sem restrições. Lojas de decoração também, vai saber por quê. Praia pode, mas só pra surfistas. Restaurantes, só pra comer na varanda. Shoppings, só praça de alimentação, em esquema takeaway. Não entendi quem vai take, se a clientela não pode entrar, mas deve ser burrice minha. Nas semanas seguintes, vai mudando tudo, numa verdadeira dança das cadeiras. Shopping só pra lojas, praia só no calçadão e surfista vai comer em casa. Quando todo mundo já decorou o esquema, vem o governador e diz que não é nada disso, fica tudo como antes, ninguém entra, ninguém sai. Aí, o próprio governador muda de ideia e resolve que abre, sim, abre tudo e de uma vez só. Parece mesmo quadrilha: olha a cobra, é mentira! De repente, vem o juiz, que não estava na história, e manda todo mundo ficar onde está, não abre mais nada, quem saiu, volta pra casa. Não demora muito, vem o Tribunal mostrar quem manda e libera tudo, porteiras abertas, palavra final. Olha a chuva, é mentira! E os cariocas, que já estão fartos de ficar trancafiados em casa, dedicados a achatar bem achatada a tal da curva, esperando o pico que nunca vem, têm que perder tempo e paciência acompanhando o vaivém. Mais do que a previsão do tempo, quem resolve sair de casa agora tem que consultar a regra em vigor. Mesmo quem não vai sair fica louco com isso. O carioca é antes de tudo um forte, mas pra tudo tem limite. Mas se fosse só isso, tudo bem, que briga de político e juiz, com o povo no fogo cruzado, volta e meia tem por aqui. Agora, a OMS, em plena pandemia, não dá pra tolerar. A OMS não para de jogar chuva e cobra pra cima da gente e depois diz que é mentira. Primeiro, disse que o vírus estava sob controle, depois, que era  uma possível emergência internacional, e quando finalmente admitiu que era uma pandemia das boas, todo mundo já estava cansado de saber. Daí pra frente, não nos deu mais sossego. É pra usar máscara, não é pra usar máscara, é pra usar máscara de novo. O remédio não serve, o remédio talvez sirva, o remédio definitivamente não serve, o remédio talvez sirva de novo. Os assintomáticos transmitem, os assintomáticos não transmitem, os assintomáticos talvez transmitam de novo. A OMS mais parece um locutor alucinado, jogando a quadrilha de um lado pro outro, sem parar. Não tem quem consiga dançar assim, desbaratina qualquer um. O cidadão fica isolado em casa, perde emprego, não ganha um tostão, e diariamente tem que ouvir que aquilo que era ontem, hoje não é mais, mas  amanhã pode ser que seja de novo. Anarriê! A cada erro, a OMS se defende dizendo que a doença é nova e ninguém sabe de nada. Se não sabe, não devia falar, ainda mais com pompa e convicção. Não que a esta altura alguém ainda acredite no que a OMS diz, mas é constrangedor ver um órgão que deveria se preocupar também com a saúde mental das pessoas causar tanta perturbação. Seria melhor mandar logo cada um fazer o que quisesse e salve-se quem puder. Termino em ritmo de quadrilha, que aliás é o que não falta  no saqueado Rio de Janeiro: cariocas que não gostam do prefeito, que não gosta do governador, que não gosta do presidente, que não gosta da OMS, que não gosta de ninguém. Só pode ser.

santo

Lá na roça, todo domingo tem missa na capelinha. Os fiéis seguem em procissão pela beira da estrada, cantando as ladainhas com voz estridente. Rezam com fé, uns pra agradecer, outros só pra pedir mesmo. Nos últimos tempos, pasaram a pedir mais do que a agradecer, mortos de medo do bicho que mata. Depois que dois casos apareceram numa cidadezinha próxima, foi um tal de fazer promessa, de beijar pé de santo, de acender vela, que só vendo. Chegaram ao ponto de botar máscara no santo, durante a missa solene. Bem se sabe que pra alcançar a graça pedida não basta bajular: é preciso também fazer o santo sofrer. Santo Antônio é um que fica de cabeça pra baixo até conceder marido. O santo da capelinha foi condenado a sufocar com a máscara até afastar o perigo. O plano era bom, mas o menino não aguentou. Não conseguiu dormir, pensando no santo se debatendo, asfixiado.  Madrugada alta, foi até a capela prestar socorro. Enfrentou bem o medo do escuro, mas na hora de tirar a máscara faltou coragem. Teve receio de ser descoberto e acabar castigado também. Castigo que ia ser de vara, bem pior que o do santo. Acabou fazendo só um buraquinho, que também não tinha sentido ir até lá e não ajudar o santo. Na missa seguinte, os fiéis viram a máscara furada e foi um alvoroço. Era um milagre, era a prova de que ninguém ali ia sofrer de falta de ar. O caso correu longe e juntou foi gente pra ver o santo milagreiro. Era uma romaria sem fim, uma montoeira de fiéis, das cidades próximas e distantes. Foi só enganação. Caiu todo mundo doente, tivesse ido à capela ou não. Ficou claro que de milagreiro o santo não tinha nada, era um impostor. Acabou destituído, dando lugar a uma Nossa Senhora vistosa, que essa sim não falha. Povo lá é devoto, mas não perdoa. Ou bem o santo entrega o milagre, ou vai pra lata de lixo. O falso milagreiro não escapou.