4.5.12

não adianta negar

Sem maiores explicações, terminou o namoro de mais de dez anos, que já era tido por noivado e, por alguns, até casamento. Foi um rebuliço geral, não se falava em outra coisa. Gerou revolta e admiração na mesma medida. Onde já se viu deixar um rapaz tão bom, ele não merecia isso. Quanta coragem, terminar um namoro já com essa idade não é pra qualquer uma, não! As especulações sobre o motivo do rompimento duraram meses. Arranjou outro, tá na cara. Flagrou ele com outra, isso sim. Pra mim, namoro longo, viraram amigos, só isso. Cada um tinha uma opinião, até aposta em dinheiro se fez. Palpitou-se bastante também sobre o comportamento da nova solteira. Vai cair na noite no dia seguinte. Vai nada, nunca foi disso. Nunca foi disso antes, quando tava com ele, espera pra ver agora. Quando saiu pela primeira vez, parecia até estrela de cinema, todos os olhares em cima dela. E quando apareceu, meses depois, de mãos dadas com outro, as fofocas dispararam de vez. É ele, é o outro, finalmente assumiu. Fui eu que apresentei os dois, não é coisa antiga, não. Que nada, olha a intimidade, isso já tem tempo. Foi assim passo a passo, moço a moço, por anos e anos. Até que o ex se casou. Passaram a olhar a moça com pena. Tadinha, é duro ver o noivo casar com outra. Pior que pra ela até agora nada, arrisca de morrer solteira. Ah, mas ele não podia ter feito isso com ela. Depois de tantos anos, tinha que ter casado. Não se deixa uma noiva assim, à beira do altar. Ela só faltou morrer de paixão. Passou meses sem sair da cama e volta e meia ainda chora por ele. E agora casou com outra, o safado. Deve estar com essa desde aquela época, sabia que ali tinha rabo de saia. A noiva se divertia com o burburinho. Tão com pena de mim por quê? Fui eu que terminei, quero mais é que seja feliz. Os votos sinceros não convenceram. O povo ficou foi alarmado. A notícia foi muito forte, coitada, a cabecinha não aguentou. Deu pra negar que foi abandonada, vê se pode. Tem que levar ao médico, vai que enlouquece de vez. Melhor deixar pra lá, é até bom ela se enganar. A noiva cansou da brincadeira e resolveu interferir. Ficaram doidos, é? Fui eu que terminei, esqueceram? De nada adiantou. Não precisa se envergonhar, querida, acontece com qualquer uma. Mas fui eu que quis! Não tem por que se enganar, todo mundo sabe que a abandonada foi você. E noiva lá encerra namoro depois de dez anos? Foi o noivo, tá na cara. Não adianta negar.

31.3.12

foi o gonzalez quem fez

Tem quem ache que roupa de grife é que é bom. Vovó, não. Quer dizer, não é que não, que pra Vovó certamente o Gonzalez é uma grife.  Aliás, a melhor do mundo. Pra Vovó, não tem quem bata o Gonzalez. Nem Chanel, nem Dior, nem ninguém. Há quanto tempo o Gonzalez existe na vida da Vovó não se sabe. De onde veio, também é mistério. O paradeiro quase nunca é sabido. Entre idas e vindas da Europa, Gonzalez quase mata a Vovó de paixão. É, agora é definitivo, ela diz desconsolada. Vendeu tudo, voltou pra Pontevedra. Agora, só comprando em loja mesmo. Mas o Gonzalez, com saudade da praia, das moças, ou vai ver que da Vovó, sempre volta. Aí, é uma alegria. Vovó corre pra renovar o guarda-roupa. Não me entendam mal, Vovó não é perdulária.  Tem o armário recheado de criações do Gonzalez, mas também só veste Gonzalez. Usa até hoje, e com frequência, vestidos de vinte, trinta anos atrás. Esse usei nas minhas bodas de prata, fala com orgulho. Esse foi o do casamento do seu pai. Ainda cabe, se gaba. A Vovó adora provar que mantém a silhueta. Mas o que dá realmente prazer à Vovó, o que ela não deixa nunca de dizer quando alguém elogia o figurino, porque pra ela vale até mais do que o elogio em si, é: foi o Gonzalez quem fez!

 









 

23.3.12

encomenda

Tia Esmeralda, casamenteira que só ela, entra no quarto toda assanhada: quem é esse que tá na sala? É o Vitor, Tia Esmeralda, meu fisioterapeuta. O Vitor? Mas como ele é alinhado, bem-apessoado! Anda, menina, não deixa ele lá esperando. Chego na sala e Tia Esmeralda, claro, já tá sondando o fisio. Quando me vê, dá uma piscadela e sai de mansinho. Passa a sessão atrás da porta, apontando pro Vitor e desenhando coraçõezinhos no ar. Mal espera ele ir embora e já volta à carga. Simpático ele, né? Simpático, bonitão e, principalmente, sem aliança! Muita sorte ter virado seu fisioterapeuta! Sabia que ele perdeu a irmã? Tia Esmeralda, você é impossível! Fez o Vitor te contar isso em dois minutos de conversa? Ele não me contou, não, eu vi na tv. Você viu o Vitor na tv, quando? Toda hora, ué, e não é só pra falar da irmã, não. Ele vive aparecendo naquelas lutas que você gosta de ver. Não, Tia Esmeralda, aquele é o Vitor Belfort! Eu sei, menina, eu sei o nome dele. Peraí, o Vitor não é o Vitor Belfort? Claro que não, Tia Esmeralda, de onde você tirou isso? Você me disse, esqueceu? Eu perguntei quem estava na sala e você respondeu que era o Vitor Belfort. Não, Tia Esmeralda, eu não disse que ele era o Vitor Belfort. Primeiro, porque o Belfort tá preocupado com o pé dele, não com o meu. Segundo, porque o meu fisio é a cara do Zé Aldo. A cara e o corpo, aliás. Peso pena, no máximo. Você não viu o Belfort na tv? Claro que vi. Acho essa luta um horror, mas não sou boba. Esse aí é a cara dele. A cara e o corpo, né, Tia Esmeralda? A cara e o corpo, eu reparei bem. Essa tá boa, Tia Esmeralda, a lenda viva do MMA cuidando dos meus pés... Aliás, essa tá ótima! Traz o Belfort, Tia Esmeralda, traz o Belfort!

21.3.12

dindinha

Ela fumava sem parar, cigarros Malboro. Sentava na frente da tv com os malboros e ia madrugada adentro, só dormia de manhã. Ela roncava muito, quando calhava de dormir com ela era um horror. Ela era brava e mandava na casa e na gente. Me obrigava a comer até o fim, querendo ou não. Ela era gorda e no dia em que caiu da escada quase matou todo mundo de susto porque ficou lá estirada sem conseguir se mexer. Eu nem tinha nascido, mas sei porque ninguém esqueceu. Eu também sei, de ouvir falar, que no dia do assalto o ladrão mandou ela deitar na banheira e depois foi um sufoco pra tirar ela de lá. Num dia de bagunça, ela me trancou no quarto dela e eu revirei tudo lá dentro. Ela quase morreu e nunca mais me trancou. Ela falava largatixa e eu morria de vontade de corrigir, mas não corrigia. Ela um dia chamou um fulano de manda-chuva e eu achei graça porque ela queria dizer o contrário, mas também não corrigi. Ela depois me chamou de saliente e eu fiquei pensando o que que ela queria dizer com aquilo. Ainda não descobri. Ela foi embora, mas vinha de visita às vezes e deu pra ver quando começou a perder a voz e os movimentos. Eu que passei a ir de visita e cada vez ela tava pior, mas com a doença, ou a idade, ou a saudade, ou tudo junto, foi perdendo a rabugice e ficando cada vez mais alegre e animada. Pra ela eu acendi, e acendo, as velas de todas as igrejas que visito. Só porque eu sei que ela gostaria. Sempre que alguém falava que ela não ia aguentar muito tempo, eu nem ligava porque tinha certeza de que ia, sim.  Quando me disseram que a coisa era séria e ela já tava perdendo a consciência, eu fui minuto a minuto na estrada pedindo pra ela me esperar. E um dos momentos mais bonitos da minha vida vai ser sempre aquele em que ela me olhou e encheu os olhos d'água e eu vi que tinha conseguido. Deu pra dizer tudo que eu tinha guardado a viagem e a vida toda pra ela, tudo que eu queria que ela levasse com ela. Depois, eu parei de falar e a gente ficou muito tempo conversando só com os olhos e ela me disse coisas lindas que eu é que vou levar comigo. Eu não tenho mais tantas lembranças dela, mas eu sinto a presença, o jeito de andar, a textura da pele, a estridência que a voz dela às vezes tinha quando ela ainda tinha voz, essas coisas que ficam na gente. Ela ficou em mim.

 

4.2.12

na cadeira do pensamento

Eu chamei a Alice de chata bisonha e a tia me mandou pra Cadeira do Pensamento pra aprender a não falar as coisas sem pensar. Eu pensei bem e vi que ela tinha razão, eu não devia ter chamado a Alice de chata bisonha, eu nem sei o que bisonha quer dizer. Aí, no outro dia, quando a tia me perguntou se eu tinha pensado bem, eu falei que sim e que a Alice era chata só. A Alice começou a chorar e a tia me mandou de novo pra Cadeira do Pensamento e disse que era pra eu ter só pensamentos bons. Eu tive dois pensamentos muito bons, mas quando eu entrei na sala no dia seguinte e a tia quis saber, achei melhor só gastar um e falei que apostava meu lanche que se a gente fizesse uma votação de quem era a menina mais feia da sala ia ganhar a Gabi disparado. Todo mundo começou a votar e e a tia me mandou pra Cadeira do Pensamento outra vez. Nesse dia, os meus pensamentos foram horríveis, que eu tava muito nervoso com a prova de História e fiquei só repassando a matéria. Aí, quando eu cheguei de manhã e a tia me perguntou no que que eu tinha pensado, preferi usar o pensamento bom do outro dia e disse que a aula de Português andava insuportável. Tudo bem que foi uma risadaria, mas ela também não precisava ter ficado tão brava e deixado a turma toda de castigo na aula de Geografia. Só eu que fui pra Cadeira do Pensamento. Passei a tarde toda lá, aí lembrei de quando eu tive catapora e a minha mãe jogou aquele remédio na banheira que deixa a água rosa e tive o pensamento genial de jogar o remédio na piscina da escola também. Já pensou na hora do recreio, todo mundo descendo pro pátio e vendo a piscina toda colorida? Vai ser bisonho! Quando eu cheguei hoje e a tia quis saber no que que eu tinha pensado, achei melhor falar que fiquei pensando na matéria de Ciências, que esse ano tá muito legal. Tá chata pra caramba, sorte que ela acreditou e ainda ficou toda contente. Eu gosto da tia, não quero que ela perca a surpresa. Eu ainda não sei como é que eu vou levar tanto remédio escondido pra escola e jogar na piscina sem ninguém ver, mas acho que com mais uns dois dias na Cadeira do Pensamento eu resolvo tudo. Pena que hoje não teve.