4.2.19

carma

Tudo que vai, volta. Aqui se faz, aqui se paga. Quem com ferro fere, com ferro será ferido. 
Lúcia sabia que carma é carma, nunca falha, mas ainda assim terminou com Breno de forma rápida e insensível, pelo whatsapp mesmo. Escreveu, sem piedade: Breno, estou com  Paulo, não me procure mais. Na verdade, nem sabia se a coisa com Paulo ia mesmo engrenar, mas resolveu apostar tudo. Melhor encerrar logo o assunto com Breno, ficar desimpedida pra Paulo. Deu certo, Breno sumiu e Paulo veio pra ficar. E Paulo era muito melhor do que Lúcia podia imaginar. Fazia tudo por ela, só queria saber dela, adivinhava cada desejo, sempre inventava novas formas de agradar. Paulo, enfim, era mais do que Lúcia merecia. Ela devia ter feito alguma coisa muito boa em outras vidas pra ganhar um namorado como aquele. Ou quem sabe nesta vida, Lúcia pensava, fazendo a conta de suas boas ações. Só as temporadas de trabalho voluntário certamente lhe valeram muitos pontos. Convenceu-se de que era isso, estava colhendo o que tinha plantado de bom nesta vida mesmo. A conclusão deixou Lúcia contentíssima, mas fez brotar uma sementinha de medo, um pontinho preto no meio de tanta felicidade. Se estava colhendo nesta vida o que tinha plantado de bom, podia muito bem ter que colher o que tinha plantado de ruim. E o que tinha feito de pior foi mesmo terminar com Breno por whatsapp. Lúcia percebeu que ia ser aquele o castigo. Paulo ia deixar Lúcia por outra. E mais, ia terminar com Lúcia por whatsapp, exatamente como ela fez com Breno. Era o carma, Lúcia sabia. O sossego de Lúcia se foi. A felicidade, a alegria, o amor de Paulo, tudo ia acabar. Quanto melhor fosse agora, pior ia ser depois. Nem valia a pena levar adiante aquele namoro, que só ia causar dor. Paulo podia disfarçar, se fazer de bom moço, mas sua missão na vida era fazer Lúcia sofrer. Estava só preparando o terreno, dando corda pra ela se enforcar. Lúcia não ia cair naquela. Já que o namoro estava condenado, ia aproveitar o tempo que lhe restava pra se vingar antecipadamente de Paulo. Se ele é meu carma, sou também o dele, Lúcia concluiu, e não vou deixar barato. Que venha o carma, estou pronta pra briga! Lúcia virou outra, tornou-se irascível, insuportável. Dedicava-se a atormentar Paulo de todas as maneiras, não dava trégua. 
Paulo tentou entender, tentou conversar, tentou desculpar, mas não teve jeito. Um dia, Lúcia recebeu uma mensagem de whatsapp: Lúcia, estou com Lucie, não me procure mais. Lúcia nem ligou. Era o carma, ela já sabia.  

28.1.19

vovó e a realidade

O jantar ia bem, até a neta dizer que ia sair com uma amiga. O irmão disse: com uma amiga, hein? Vovó não entendeu. E o que que tem sua irmã sair com uma amiga? Nada, o irmão respondeu, é que normalmente meninas saem com meninos no sábado à noite. Vovó era ingênua, mas nem tanto.  O que você está sugerindo? Nada, só estranhei. Pensando bem, ela nunca sai com meninos, o irmão continuou, dando uma piscadela pra irmã. Sua irmã ficou dez anos com o mesmo namorado, natural que passe um tempo saindo só com amigas. Um tempo que já dura muitos anos, né, Vovó, respondeu o irmão.  De fato, a neta só saía com amigas, nunca falava em rapazes. E não é só sair, Vovó, o irmão continuou, ela também dorme nas casas das amigas, fazendo sabe-se lá o quê. Vovó foi ficando tensa, e Vovó tensa era maior diversão. Quanto mais se exaltava, mais o irmão provocava, mais a risadaria geral aumentava. Só Vovó não achava a menor graça. De tensa, Vovó passou a  transtornada. Ficou de pé, olhou para neta e perguntou: Você não vai se defender? Defender de quê, vovó? Ele está só expondo os fatos... O choque da Vovó aumentou, os familiares já choravam de rir. Vovó apelou pra filha: vai deixar ele falar assim? Vai deixar ele caluniar sua filha? Mamãe, são observações pertinentes, não me parece que sejam calúnias. A farra continuou, até que a neta notou que Vovó se balançava pra frente e pra trás, olhando pra baixo com olhar perdido,  repetindo baixinho: a minha neta não, a minha neta não. A neta percebeu que tinham ido longe demais e achou melhor confessar. Não sou não, Vovó, é brincadeira. Mas depois que Vovó viu a verdade, depois que ligou os pontinhos e percebeu que tudo fazia sentido, que tudo que o neto falou se encaixava direitinho, não tinha mais volta. A neta era mesmo, não adiantava negar. Vovó passou a noite em claro, pensando e repensando no assunto, e quanto mais pensava, quanto mais se lembrava dos trejeitos da neta, dos olhares que lançava pras amigas, especialmente pra morena bonita que estava sempre com ela, mais se convencia de que ela era mesmo. Não tinha jeito, era melhor tentar se conformar.
Dias depois, Vovó esbarrou na neta na rua, muito bem acompanhada por um rapaz lindo, alto, forte, distinto. Homem, acima de tudo, homem. Quem é esse, minha filha? A neta  não soube o que responder, já que não estava saindo com o rapaz há muito tempo, mas ele não hesitou. Sou o namorado, senhora, muito prazer. Vovó foi à estratosfera e voltou, de tanta felicidade. Então a neta não era!  O prazer é todo meu, todo meu! Que surpresa boa! Nunca pensei que fosse ver minha neta com um rapaz! Com um rapaz tão simpático, Vovó disfarçou, percebendo a gafe. Agarrou as mãos do rapaz, dizendo sem parar: obrigada, obrigada! Obrigada pelo quê, senhora? A neta, que adivinhou o motivo, gelou, mas Vovó teve o bom senso de não responder. Coisa rara...

21.1.19

o pai da noiva

A noiva sempre sonhou em se casar. Quando o noivo fez o pedido, começou imediatamente a planejar os detalhes da cerimônia. Na verdade, a rever cada detalhe porque já tinha tudo planejado há anos. A noiva assinava revistas de festas de casamentos, estava atualizada com as tendências da moda, conhecia os melhores doceiros, estilistas, maquiadores. Já sabia qual ia ser o modelo do vestido, já tinha decidido o recheio do bolo, as flores da igreja, os dizeres do convite. Faltava só executar. A noiva cuidou pessoalmente de cada etapa, embora tenha contratado a melhor cerimonialista da cidade. O seu ia ser o casamento do ano, de arromba, impecável. A noiva se preparou para o grande dia no melhor hotel da cidade, sendo paparicada de todas formas com massagem, meditação, ofurô, pacote completo. Quando estava quase pronta, mandou avisar que o pai podia vir. Queria chegar na igreja pontualmente quinze minutos depois do horário marcado. O pai não demorou a chegar, animadíssimo, ostentando cabelos negros que tinha pintado especialmente para ocasião. A noiva quando viu teve um ataque. Todo mundo sabia que o pai tinha a cabeça mais do que branca, não tinha cabimento pintar os cabelos bem no dia do casamento. O que ele pretendia com aquilo? Roubar a atenção dos convidados, ser o assunto da noite? O pai disse que não, que só queria ficar mais bonito para o casamento, mas a noiva não quis conversa. Tinha sonhado demais com aquele momento, tinha visualizado a entrada na igreja um milhão de vezes e em nenhuma delas o pai tinha os cabelos pretos. Ainda mais um preto daqueles, quase azul. A mãe ainda tentou contornar. O cabelo do seu pai é tão pouco, minha filha, preto ou branco ninguém nem vê. Não adiantou, a noiva bateu pé. Ou o pai despintava os cabelos, ou ela não entrava na igreja com ele. O pai não estava disposto a ceder. Não tinha paciência para chiliques e estava mais do que satisfeito com seus cabelos novos. Na verdade, mesmo se quisesse colaborar, não haveria tempo pra nada àquela altura. A noiva, já um tanto desequilibrada, apesar dos exercícios de relaxamento e concentração feitos ao longo do dia, começou a pensar num substituto, porque com o pai naquele estado não entrava. Considerou todas as opções, irmão, tio, melhor amigo, mas acabou desistindo. Noiva entra com o pai, é a regra. Quando já estavam vinte minutos atrasados, a noiva afinal se conformou. Ia ter mesmo que entrar com a graúna ambulante e torcer pros convidados esquecerem a cena, deslumbrados com a cerimônia e a recepção. As fotos seriam photoshopadas e a posteridade ia guardar a imagem do pai como ele era, um distinto senhor de cabelos ralos e brancos. Pensando assim, conseguiu entrar no carro, mas passou o caminho pra igreja chorando de raiva, isso não tinha como controlar. Já com quarenta minutos de atraso e o rosto um pouco inchado, a noiva finalmente chegou. As portas da igreja se abriram, a marcha nupcial tocou e os convidados se levantaram, na expectativa. A noiva fez sua entrada aos prantos, sem conseguir pensar em nada a não ser nos cabelos do pai. O pai entrou orgulhosíssimo, também pensando só em seus cabelos novos. Foi uma comoção, uma chuva de aplausos, lágrimas e flashs.  Coisa bonita que é ver pai e noiva entrando assim, tão emocionados com aquele momento especial.