30.12.06

mãos ao alto

Vovó concorda com a ida ao médico. E olha que ela nem sabe quem é, eu escolhi sozinha. Ele nos recebe, acomoda, pergunta o nome da Vovó e o que ela tem. Sabe quando o guardinha pede documentos e o motorista inverte o jogo e diz que ele que se identifique antes? Pois é. Vovó se empertiga toda e responde que primeiro quer saber o nome e a especialidade do doutor. Teria sido menos impactante se tivesse puxado um revólver da bolsa e anunciado um assalto.

26.12.06

lobo mau

É chamado de Lobo Mau e gosta. Chega a usar o apelido como sobrenome, só assina Jorge Lobo Mau. O velho lobo anda pelos corredores da Justiça gritando barbaridades, usa o elevador no lugar do ascensorista, sem pedir licença, canta tudo que é mocinha. Às vezes, aparece de terno vermelho, à moda da Chapeuzinho. Um dia, sentou-se à mesa de audiências, apontou pra lourona a sua frente e disse: é minha ex-mulher, Excelência, essa audiência não vai dar certo. De fato, não deu. Tendo a ex-mulher como ex adversa, Lobo Mau levou uma surra. Aproveitou pra provocá-la sem piedade. A platéia adorou, rolou de rir. O próprio juiz rolou, era incontrolável. Furiosa, mas mantendo a linha, a ex venceu de lavada. Derrotado, Lobo Mau apelou. Fez um longo discurso, alegando que a empresa oprimia o autor com tantas provas, que todos sabiam o que os empregadores fazem com seus funcionários, que a vitória tinha que ser da parte mais fraca. Acabou com ameaças terríveis caso o autor perdesse. Poupou as mulheres, mas sentenciou que os homens presentes nunca mais iam ser homens de novo. E isso só pra começar. Era o castigo dos céus. Exaltou-se tanto que os botões do paletó começaram a se despregar. A ex fez graça: cuidado, o castigo está te pegando. E Lobo Mau, virando-se para a platéia: não tem problema, depois vc costura.

22.12.06

jogral

Na casa da minha avó, todo Natal tem jogral. Cada um ganha um número e lê um pedaço do texto. Alguns sozinhos, outros em dupla ou em trio. Todos os anos, eu lia com um senhor de voz engraçada, que sempre errava a fala e me matava de vontade de rir. Esse senhor, parente de alguns dos meus primos, costumava passar o Natal lá na vovó. Era simpático, mas fazia sempre as mesmas brincadeiras. Tinha mania de cantar uma musiquinha com meu nome, nunca mudava. Eu achava aquilo um pouco enjoado, mas gostava dele. Ele morreu há alguns anos. Foi quando descobri que era meu parente também. Os outros netos devem ter tido a mesma sensação, porque foram ao enterro sem que ninguém precisasse forçar. Carregaram o caixão espontaneamente e meu irmão nem se importou de ficar com o terno todo sujo de cal. Foi a primeira vez que eu vi minha família toda reunida sem ser Natal. Quem me deu essa visão foi meu companheiro de jogral. Eu sempre ouço a voz dele quando falo nosso trecho.

21.12.06

camarão

O Camarão é uma hola. Quando ele passa, o centro inteiro se levanta e grita. O barulho começa bem longe, alcança a gente e continua até morrer lá na frente. Vai todo mundo pras janelas assistir, o bairro pára. O Camarão é um sucesso. Deveria ficar lisonjeado, mas não gosta, não. Xinga, fica vermelho, cai como um patinho. Não sabe que reagir só piora as coisas. Dá pra imaginar como tudo começou. Um vizinho gritou "camarão, camarão!", o Camarão se exaltou, dois vizinhos gritaram "camarão, camarão!", o Camarão se exaltou mais ainda. Com o tempo, o prédio, a rua, o bairro inteiro passou a gritar. Logo vai ser o Rio todo, num interminável coro. O pior é que ele fica, sim, vermelho feito um camarão, mas o apelido não vem daí. Um dia, a mulher do Camarão avisou: meu bem, vou comprar camarão e já volto. Nunca mais voltou e ele, não bastasse ficar sem mulher, se transformou na piada da cidade. Até no jornal já foi parar. Os que não conhecem a história, ou pensam que é lenda, entram em pânico quando se vêem na crista da onda. Acham que é tiroteio, arrastão, quem sabe o apocalipse. Que nada, é só o Camarão.

19.12.06

carneirinhos

Há quem conte carneirinhos. Vovó conta mobília. Graças às noites de insônia, Vovó sabe que tem cinquenta e duas camas e sessenta e sete cadeiras. O número de sofás continua desconhecido. Vovó dorme sempre antes de terminar a conta.

17.12.06

down, down, down

A mulher não sairia de Londres sem comprar o tal creme que valia por uma plástica. Foi cumprir a missão logo no primeiro dia, mas não conseguia achar a loja. O número simplesmente não existia, embora ela tivesse anotado o endereço com toda a atenção. Pediu ajuda a um guardinha, que explicou que a loja era ali mesmo, downstairs. A mulher só conhecia downtown, mas achou que era tudo a mesma coisa. Ok, downtown, lá vou eu pro centro. E o guardinha: não, downstairs. Guarda burro, já entendi que é no centro. No, madam, downstairs. Ficaram nisso um bom tempo até que o guarda, já exausto, puxou a mulher pela mão até a beira da escada e disse: you see? Downtown. E lá se foi ela, downtown abaixo.

15.12.06

só de maiô

Lívia era uma coroa e tanto. Bonitona, chamava a atenção por onde passava. Deve ter um corpão, as pessoas pensavam. De fato, tinha, mas não exibia. Há muitos anos, Lívia não era vista de biquíni. Achava que não ficava bem pra uma senhora da sua idade. Não o biquíni, o piercing. Quando os piercings surgiram, Lívia não era garota, mas seu sonho era usar um. Passou um bom tempo no dilema, até resolver fazer o próprio gosto. Deu com uma mão, tirou com a outra. Prometeu nunca mais exibir a barriga em público. Nem namorado arranjava, pra não entregar o segredo. A vida com o piercing impôs a Lívia certas limitações, mas, pra ela, nada se comparava ao prazer de chegar em casa e, sozinha na frente do espelho, desfilar a barriga escultural enfeitada com a pedrinha.

14.12.06

tarde demais

Comprou o chinelo vermelho, salto plataforma, dois números acima do tamanho, num revéillon na praia alguns anos atrás. Pagou uma fortuna, mas não havia solução. Quem mandou se meter no meio de areia, chuva e cerveja com a sandalinha de salto que em cinco minutos destruiu seu pé? O jeito foi apelar pro chinelão cafona, comprado na única loja aberta na região. Era horrível, mas ficou com ele. Não ia se desfazer do alto investimento só porque o ano já tinha virado. Passou a usar em casa, era ótimo contra cacos de vidro e chão molhado. Volta e meia, saía com ele, mas percebia a tempo e voltava. Até o dia em que quando viu já ia longe. As pessoas olhavam e ela, boba, achava que estava abafando. Custou a entender que a razão do sucesso era a combinação blazer, saia, chinelo. Descobriu quando não havia mais o que fazer. Não podia deixar juiz e cliente esperando pra ir em casa trocar de sapato. Imaginou a cena de horror: a entrada na sala apinhada de gente, o choque na cara de todos, a fofoca se espalhando pelos corredores. Decidida, jogou o chinelo no lixo e entrou descalça mesmo. Bom dia, excelência, desculpe o meu estado, fui assaltada. O juiz olhou a mulher, impecavelmente vestida e penteada, e demorou a descobrir o que estava errado. Ladrão estranho esse, doutora, deixou as jóias e a bolsa e levou só o sapato. Ladrão de nível, excelência, tinha olho. Meu sapato sozinho valia mais do que todo o resto junto. Ele não perdeu tempo com bobagem, foi direto no que importava. Pelo menos, não fui assaltada por um ladrão qualquer. Bem, doutora, este Juízo lamenta o ocorrido e autoriza sua participação na audiência sem o sapato, pode se sentar. Obrigada, excelência, mas ainda estou muito abalada. Vossa Excelência me concede cinco minutos pra tomar uma água antes de começarmos?

13.12.06

vovó em londres

Vovó estava péssima quando viajamos. Sofria de reumatismo, polimialgia, sei lá, praticamente não podia andar. Um dia com ela equivalia a três horas sem. Mamãe não aguentava e partia na frente. Uma tarde, não sei de onde, surgiu um tal seu João. O homem começou a nos acompanhar pela rua, batendo um papinho com Vovó. Seu João era simpático e a idéia de tê-lo como avô bem que me animou. Com o tempo, o velhinho foi pegando cada vez mais velocidade e percebi que meus planos pro futuro iam acabar ficando pra trás. Engano meu. Vovó passou a marcha e disparou com ele. Não tinha dor, não tinha cansaço, estava ótima. Mamãe até se assustou quando viu o foguete passar por ela, esbanjando disposição. Como ficamos pra trás, não há como saber por que Vovó deixou o partido escapar. O fato é que continuou solteira, e as dores, que coincidência, reapareceram ainda mais fortes.

11.12.06

muito liberal

Pai e filho partiram pra Bahia sem pouso certo. Iam pulando de praia em praia, escolhendo de dia a pousada em que dormiriam à noite. Normalmente, passavam por umas cinco antes do pai se decidir. O filho, preguiçoso, sempre esperava no carro. Naquele dia, o pai escolheu logo a primeira. Não que fosse nenhuma maravilha, mas a dona, Dona Diva, era, ela sim, maravilhosa. Cheio de charme, o pai combinou preço, quarto e avisou: só um minuto, vou chamar o Claudinho, meu filho. Quando Dona Diva bateu com o olho no garotão de um metro e noventa, bronzeado e lindo de morrer, disparou na lata: se vcs quiserem, temos quarto de casal. Como assim, se assustou o pai. É, a pousada aqui é muito liberal. Que é isso, Dona Diva, o Claudinho é meu filho, quer ver nossos documentos? Não quero ver nada, o senhor não me deve explicações. O quarto é ótimo, o Claudinho, seu filho, vai adorar. Não adiantou o pai insistir, teve que dormir agarrado com o filho na mesma cama. Cama de viúva, ainda por cima.

vermelho, amarelo, verde, azul

Chove a qualquer hora em Nova York, é uma praga. Comecei com um guarda-chuva pequeno, simples, fui progredindo até chegar a um tamanho GG, multicolorido. Uma imensa pizza de oito pedaços, cada um de uma cor. Durante um temporal, já recebi oferta de sessenta dólares por ele, mais de duzentos por cento de lucro, mas resisti. Foi meu melhor amigo em NY, é meu grande inimigo aqui. Jamais andaria pelas ruas brasileiras com a aberração colorida, mas mamãe adora. Anda pra todo lado, com ele e comigo. Às vezes, dá carona pros três filhos e ainda sobra espaço. Quando chove, junta gente na frente de casa só pra ver mamãe passar. Sou conhecida na vizinhança: " lá vai a filha da barraqueira". A barraca até que tem sua utilidade. Os pivetes não ousam se aproximar, assustados com o espeto pontudo e afiado que coroa a peça. Fazem bem. A descoordenada mamãe já quase me furou o olho com aquilo. Mas nada se compara ao dia em que, esquecendo-se de que eu estava com ela, fechou o guarda-chuva em cima de mim. E não conseguiu mais abrir. Fiquei no meia da rua com a coisa me cobrindo da cabeça aos joelhos. Preferia morrer sufocada, o que de fato quase aconteceu, a ser resgatada de um guarda-chuva diante da multidão. Preferia, mas os deuses não me ouviram. Não deixei barato. Espalhei pra todo mundo que lá em casa é assim. Quando contrariada, mamãe não quer saber de armário ou quarto escuro. Tranca os filhos no guarda-chuva gigante.

9.12.06

rogério ceni

Jogava bola como ninguém, era um matador. Nas peladas do sítio, era sempre o artilheiro, disparado. O time que ficava com ele, no entanto, tentava de todo jeito anular o sorteio. Às vezes, os jogadores, revoltados, ameaçavam nem entrar em campo. Melhor perder por W.O. do que passar pelo vexame. É que o moleque era mesmo um talento, mas não podia ver um gol, do seu time ou do adversário, que metia a bola dentro. Jogo com ele nunca acabava com um ou dois gols. Fazia logo uns dez. Em dias bons, cinco a favor e cinco contra. Se o outro time não fizesse nenhum, dava um comemorado empate. O mais comum era fazer logo os dez de um lado só, o seu. Rogério lutava contra o impulso, mas não adiantava. Quando via o gol, batia. Acabou condenado a goleiro, de costas pro gol. De lá só saía em casos especiais, diretamente pra área do adversário. Batia, não tinha erro, era gol.

8.12.06

menos pra ela

Aquele homem gordo e feio era dela. O homem era gordo e feio, mas ela não sabia. Gostava de dormir com ele, gostava de antes de dormir com ele, gostava de saber que era, ela, a dona dele. De vez em quando, vinha pra cama mais cedo, fingia que dormia e esperava o homem chegar, só pra espiar enquanto ele se trocava. Abria os olhos um pouquinho e ficava olhando, pensando por que sorte aquele homem era seu. Apertava os olhos enquanto ele lia e esperava quietinha que apagasse a luz e adormecesse. Aí, passava a noite acordada, tateando o homem que era gordo e feio pra todos, menos pra ela.

7.12.06

pilastra assul

A mãe não falava nada de espanhol, mas não se convencia. Mesmo com três filhos fluentes na língua, era sempre ela quem se comunicava com os nativos, num sofrível portunhol. Gastou duas horas e vinte minutos pra alugar um carro em Madri, e isso porque a funcionária era muito esforçada e tinha vivido seis meses no Brasil. Afinal, com documentos e chave na mão, disse: vamos, meninos, está na pilastra azul. Chegaram ao estacionamento e não havia nenhuma pilastra dessa cor. Tem que ter, ela repetiu muitas vezes, pilastra assul. Percorreram o longo estacionamento de alto a baixo e nada da tal pilastra. Tudo lá era branco, à exceção dos carros. Finalmente, a mãe resolveu pedir ajuda e, depois de mais uns quarenta minutos, voltou, sorridente: vamos, meninos, nosso astra azul está logo ali.

6.12.06

agudo demais

A longa viagem no carro apertado beirava o insuportável. A mãe e a empregada não davam conta de controlar os três meninos, que gritavam sem parar no ouvido do pai. Quando a paciência chegou ao fim, o pai, sem olhar pra trás pra não ser injusto, virou o braço e tascou um beliscão no primeiro que apareceu. Nada sério, um beliscãozinho rápido, só pra assustar. O grito que se seguiu não correspondeu à agressão. Foi intenso, agudo, agudo demais. Um grito de mulher. O pai havia beliscado a empregada, a que vinha lhe tirando o sono há semanas. Chegando ao destino, o pai aplicou uma bela surra nas três crianças. Por culpa delas, que não gritaram o suficiente, perdeu a oportunidade de dar um apertão caprichado na coxa da moça.

5.12.06

garotinhos

Não é o governador ter ganhado estátuas dele e da primeira-dama, em bronze, tamanho natural, no banco da praça de São Fidélis. Nem sei onde é São Fidélis. Não é o prefeito ter usado dinheiro público pra fazer as tais estátuas. Não é nem os moradores de São Fidélis terem agora que dividir o assento com o casal estático. Já disse, nem sei onde é São Fidélis. Também não é as estátuas terem sido romanticamente colocadas naquela praça porque foi onde o governador fez uma entrada triunfal a cavalo, espatifou-se e conquistou a primeira-dama. É o tombo ter dado em namoro, o namoro ter dado em casamento e o casamento ter dado no que deu e no que ainda nos dará.
Não é uma croniqueta, é só um desabafinho. E pra terminar: Garotinho ficou mais magro, mas até bem parecido. Rosinha está diferente, mas gorda e feia como sempre.

4.12.06

Père Noël

Vovó tem o telefone do Papai Noel. Não sei o que ela fez, mas, quando os netos começaram a achar o velhinho muito parecido com o tio, tratou de descolar o telefone. Os milhões de criancinhas que escrevem cartas com pedidos todos os anos morreriam de inveja se soubessem que no catálogo da Vovó está lá: Père Noël, número tal. Volta e meia pego os dois conversando ao telefone. Vovó não dá chance ao azar. Controla as rotas do Papai Noel, sabe a hora certa em que ele vai passar. Pelo tempo que leva na casa da Vovó, distribuindo presentes pros netos, namorados, amigos e simpatizantes, não sei como Papai Noel consegue dar conta de suas obrigações com o resto do mundo. Na Vovó, pelo menos, não tem erro. Todo ano, mais gordo, mais magro, mais velho, mais novo, com barba de verdade ou postiça, o velhinho sempre vem.

2.12.06

d'accord?

A mãe fala francês, arranha no inglês e no resto chuta que é um horror, mas se sente a poliglota. Viaja três vezes por ano. Não pelo prazer de viajar, mas para conversar com todo e qualquer estrangeiro que cruze seu caminho. Puxa conversa com taxistas, recepcionistas, garçons, vendedores, quem aparecer. É um custo sair do hotel. A mãe passaria o dia inteiro na recepção, só conversando. Quando sai, pega um táxi e é outra guerra. A corrida de cinco minutos acaba durando uma hora. A mãe faz o taxista passar várias vezes pelo local de destino, só pra não interromper a falação. Quem já a viu se esforçando em italiano, espanhol e até japonês, que julga dominar, sabe o que representa dar voltas e voltas trancada num carro enquanto ela fala. Vez por outra, até os taxistas se cansam e abrem mão de cobrar a longa corrida, desde que ela desça imediatamente. A mãe adora taxistas, mas é especialista mesmo em recepcionistas. Faz sempre amizade, chega até a trocar cartõezinhos no Natal com muitos deles. Se encantou por um jovenzinho em Paris - tão simpático, minha filha, vcs precisam conversar. A filha conversava. Dava bom dia, boa noite, pedia a chave, agradecia, enfim, conversava. Subia pro quarto e a mãe continuava no bate-papo. Quando chegava, a filha quase sempre já estava dormindo. Uma noite, a mãe entrou aflita. Minha filha, o Pierre vai embora amanhã. Foi despedido? Não, troca de plantão. Vc me acordou pra dizer que o cara vai folgar? Não, te acordei pra vc se despedir. A filha tentou voltar a dormir, mas a mãe não desistiu. Liga lá pra baixo, minha filha, diz que vai sentir a falta dele. Sabendo que a mãe seria capaz de passar a noite insistindo, a filha ligou. Nem ouviu direito a resposta do rapaz, começou a cochilar antes do fim da ligação. Só pescou um demain, d'accord? Ça va, demain, d'accord. A mãe deu um pulo. Demain d'accord o quê? Sei lá, mãe, tava dormindo. Minha filha, ele marcou um encontro com vc? Bom, se tiver marcado, amanhã a gente desmarca. E se ele quiser te sequestrar? Mãe, é um recepcionista, não é um psicopata. E se for? A gente troca de hotel. E se ele te seguir? Por via das dúvidas, passaram o resto da viagem trancadas no hotel. Foi duro pra filha perder quatro dias em Paris, mas valeu a pena. Fingindo-se de apavorada, fez a mãe jurar que nunca mais conversaria com estranhos, especialmente com perigosos recepcionistas. Isso vale muito mais do que quatro dias, vale uma vida inteira sem pisar em Paris.

1.12.06

quase perfeito

Mariana não era nada exigente com homens. Na verdade, só não abria mão de uma coisa: que o sujeito fosse absolutamente apaixonado por futebol. Homem que não gosta de ver jogo e não acompanha campeontato não serve pra mim, dizia. O exótico requisito era conhecido por todos. Um dia, vem a prima mais nova: vc não diz que só namora torcedor fanático? Vou te apresentar meu namorado, ele é exatamente assim. Parece perfeito, Marcinha, só tem um defeito. Qual? Já tem namorada, esqueceu? Empolgada por ter encontrado alguém que se encaixava no padrão da admirada prima mais velha, Marcinha tinha esquecido completamente.

29.11.06

inclussível

Mandava uma orquídea toda semana e nunca assinava o cartão. A vizinha recebia a flor, enfeitava a casa, ria do bilhetinho e fingia não saber quem era o admirador. Não haveria mesmo como adivinhar se ele não tivesse uma marca registrada. O textinho variava, mas nunca faltava a palavra preferida do vizinho: inclussível. Aquele inclussível não deixava dúvidas. No cartão: amo vc, inclussível quero me casar. Na portaria: posso acompanhá-la ao supermercado, inclussível carregar suas compras. O admirador nem desconfiava, julgava-se absolutamente secreto. Por precaução, ainda levava uma orquídea pra vizinha sempre que a encomendada chegava. Só pra despistar ainda mais. Plano perfeito, não fosse o inclussível.

28.11.06

só de chinelos

Mantinha o cabelo ligeiramente comprido atrás (não vou chamar de mullets) e a pele super bronzeada. Só viajava de terno e gravata. Mesmo pra pegar a ponte aérea, no domingo de manhã, vestia o uniforme. Em viagem internacional, nem se fala, só usava terno do Alberto. Chegando a Paris, certa vez, foi logo cercado por distintos funcionários do aeroporto e levado a uma salinha reservada. É o terno, pensou, funciona mesmo. Engataram uma conversa sem fim. Um pouco cansativa, é verdade, mas nada que a cordialidade francesa não compensasse. Até a roupa ele tirou, a pedido dos simpáticos anfitriões. Não sabia que na França os vips ficavam pelados ao entrar no país, mas achou o ritual divertido. Oito horas depois, já um pouco impaciente, descobriu que estava era preso, confundido com um traficante mexicano. Quando liberado, foi direto ao barbeiro. Usa agora o cabelo curtinho, a pele bem branca e só viaja de chinelos. No máximo, vai ser confundido com um pé-rapado qualquer, o que não dá mais do que meia hora de detenção.

27.11.06

veados e caranguejos

Os dois partidos políticos dividem a cidade ao meio. A elite é toda veado. O povão, caranguejo. A vitória dos veados foi esmagadora e a tradicional família passou o dia celebrando. A empregada, amargando a derrota, serviu o jantar. Veados celebrando. Trouxe a sobremesa, veados ainda celebrando. Tirou a mesa e a festa continuava. Lá pelas tantas, alguém pergunta: e vc, Maria, é veado ou caranguejo? E ela, com um fiapo de voz: veado, ué.

26.11.06

vale cada centavo

Visitando o banheiro sem a companhia de um livro ou revista, Orlando resolveu matar o tempo lendo os rótulos dos produtos de beleza da irmã. Já tinha conferido a bandejinha quase toda quando bateu com o olho no autobronzeador. Estando sozinho, aproveitou para experimentar um pouco. Saiu do baheiro triunfante, foi direto na irmã: rodei meia Nova York e gastei os olhos da cara pra te trazer o tal bronzeador e ele não funciona, né? E vc ainda fica me enganando, dizendo que é ótimo. E é ótimo mesmo, Orlando, olha só a minha cor. Pois eu experimentei e não fez a menor diferença. No dia seguinte, com uma espécie de jogo da velha na testa, descobriu, horrorizado, que o produto valia cada centavo.

24.11.06

sua mãe morreu

Duas horas e quinze após o horário da saída, Ângela chegou à escola. O filho, mais do que acostumado com os atrasos maternos, balançava as perninhas no banco do pátio, ao lado do coleguinha que se debulhava em lágrimas. Ângela, mãe escaldada, correu pro chorão. Que que houve, menino? Minha mãe morreu. Ufa, não foi culpa do filho. Não morreu, não, querido, ela tá chegando. Não, ela morreu mesmo. Que nada, quem disse isso? Apontando o dedinho trêmulo na direção de Fabinho, o menino respondeu: ele! Filho, como é que vc fala isso? A mãe dele não morreu. Morreu, sim, mãe, a mãe dele morreu e não vai chegar nunca mais. Sentindo a superioridade do adversário, Ângela foi buscar a ajuda da professora. Enquanto tentavam convencer o aluno da inocorrência da morte, Fabinho, por trás, olhando fixo nos olhos da vítima, repetia baixinho: morreu, sim, sua mãe morreu. O coleguinha, naturalmente, confiou mais nele do que nas duas. Quando finalmente chegou, a desnaturada mãe encontrou o filho e a professora parados do lado de fora da escola já fechada. Ao vê-la, o menino disparou rua abaixo. Tinha medo de fantasma.

23.11.06

vovó em paris

Se foi em Paris que Vovó andou de metrô pela primeira vez, foi também lá que pegou um táxi na metade da quadra pra ir até a esquina. Entrou no carro fazendo cara de dor e gemendo: mes jambes, mes jambes. Desculpou-se pela curta corrida, explicando que não tinha condições de andar até a Sainte Chapelle. O motorista, solícito, nem se importou de perder sua vez no ponto, até porque aproveitou para nos levar quase até a Sacré-Cœur. Em Paris, Vovó não aguentava mais de dez minutos nos museus (as pernas doíam muito), mas gastava horas e horas nas Galeries Lafayette. Vinha me encontrar no curso ao meio-dia, carregada de sacolas, já tendo passado a manhã na loja. Na parte da tarde, era eu quem carregava as compras, o que me rendeu um crônico problema na coluna. Nunca entendi como Vovó fazia para andar metade do dia carregando aquele peso. Provavelmente, despejava tudo em cima de um vendedor das galeries, gemendo: mes jambes, mes jambes. Não comprou nada pra si mesma, mas levou Paris inteira pros outros. Até o sobrinho da amiga da manicure estava na lista. Precisou de sete malas pra acomodar todos os presentes. Na hora de pesar a bagagem, não adiantou fazer o número das jambes, teve que pagar dois mil dólares de excesso. Mas isso é segredo, prometi não contar.

21.11.06

vovó em roma

Vovó em Roma até que se comportou muito bem. Não fosse por uma coisinha ou outra, teria sido impecável. Na verdade, não fosse por uma coisona. Nosso excelente hotel oferecia, como principal vantagem, café da manhã das oito ao meio-dia. Existe coisa melhor do que poder levantar com calma, sem ter que correr pra não perder o café? Imagino que não, mas certeza não tenho. Vovó esnobou a mordomia e, naturalmente, me obrigou a esnobar também. Embora o café só começasse às oito, às sete eu tinha que estar pronta. O objetivo nem era chegar ao bufê antes dos outros hóspedes. Se assim fosse, eu acharia até divertido. A preocupação de Vovó, porém, era outra. Ela considerava que, se o café começava às oito, às oito em ponto as arrumadeiras deviam começar a trabalhar. Vovó não queria atrapalhar o serviço de ninguém, portanto, nesse horário nosso quarto tinha que estar vazio. Para isso, bastaria descer às dez pras oito, certo? Sim, mas não era tudo. Vovó não queria apenas o quarto desocupado, queria arrumado. O que vão pensar de nós se encontrarem esse quarto todo bagunçado? Pra evitar o vexame, às sete começava a arrumar as camas, lavava o banheiro, guardava as malas no armário, até a latinha de lixo do quarto despejava na lixeira do corredor. Lá pelas dez e meia, a arrumadeira chegava e encontrava o milagre, que, infelizmente, durou só uma semana.

20.11.06

inteligente demais pra mim

Novidade no mundo do atendimento telefônico. Pra mim, pelo menos. Vai ver que as telefonistas virtuais existem há muito tempo e eu que estava por fora. O choque de ser atendida de cara, sem ter que teclar um número de um a dez e aguardar quarenta minutos, foi logo superado pela surpresa de estar falando com uma atendente virtual. E não uma qualquer, uma atendente virtual inteligente. Não é mais necessário selecionar a opção desejada, basta agora dizer o que se deseja. Como saber? Como adivinhar o que a telefonista virtual quer ouvir? A cliente de carne e osso não é tão esperta. Pressionada, falo: mudança de telefone. Surpreendentemente, a atendente responde, empolgada: entendi! Santodeus, na minha primeira experiência virtual já tive sucesso! E eu me sentindo incapaz de conversar com uma máquina... A atendente prossegue: mudança de endereço, vou transferir. Não podia dar certo, né? Até porque a virtual certamente cresceu ouvindo só sotaque paulista. Entra a telefonista de verdade: que endereço deseja, senhora? Nenhum, pedi telefone, mas a atendente virtual disse entendi! e me transferiu pra vc. A mulher cai na gargalhada. Ela disse que entendeu, senhora? Parabéns, é a primeira vez. Até hoje ela só tinha dito: não entendi, vou transferir para uma de nossas telefonistas.

19.11.06

prefiro os impontuais

Não sei como vc aguenta esse seu namorado, Aninha. O sujeito nunca chega na hora. Por isso mesmo, queridinha. Não há característica masculina mais sedutora do que a impontualidade. Um homem impontual é um prêmio. Nunca pode reclamar da demora feminina, é um igual. Se o sujeito vem me buscar no primeiro encontro e chega na hora, descarto logo. Invento uma dorzinha de cabeça e nem sigo adiante. Já o impontual, mesmo não sendo tão bom de papo, merece sempre um repeteco. Nem que seja só pelo prazer de ficar pronta primeiro.

17.11.06

cera quente

Há quem busque emoções fortes pulando de pára-quedas, nadando com tubarões, dirigindo a toda velocidade. Tolice, bom mesmo é cera quente. A cera quente é barata, segura e pode ser encontrada em qualquer esquina. Não precisa nem marcar hora, é só chegar, comprar uma dose e aproveitar. Só quem já provou sabe o que é. Permitir que uma pessoa espalhe no seu corpo um semilíquido escaldante, que cola e só sai levando a alma junto, é uma experiência única. Quem conhece a adrenalina que a aproximação de uma espátula lambuzada de cera fervente dispara não quer saber de outra coisa. O grande momento nem é quando a cera é arrancada e vc ganha uma perna nova, como se tivesse trocado de pele, mas quando ela gruda. Nessa hora, vc é a tal, a que pode tudo. Quem vence o desafio sem sair correndo se sente a dona do mundo. A depilação pode parecer uma mera atividade rotineira das mulheres, mas é, na realidade, um esporte altamente radical. Tão bom que vicia e, só por isso, é repetido a cada quinze dias. Mulheres não se depilam por necessidade, mas por prazer.

16.11.06

ridículo e feliz

Papai, piloto aposentado, passava os dias em casa, ouvindo mamãe falar. Passar um dia inteiro ouvindo as conversas de mamãe - com o telefone, com a vizinha, o porteiro, sozinha - não é pra qualquer um. Papai merecia receber pela tarefa. Eu e meus irmãos só aguentamos porque nos trancamos nos quartos e ouvimos música no último volume. E olha que, mesmo com o som no máximo, ainda é possível distinguir lá no fundo as gargalhadas de mamãe. Papai vivia rabugento com a falação, até resolver dar uma arrumada em seu antigo equipamento de vôo. Anda agora pela casa, ridículo e feliz, com o fone de ouvido pregado na cabeça. Coisa de piloto profissional, abafa qualquer ruído.

14.11.06

insônia

O moço ligava quase todas as noites, conversava e cantava pra moça dormir. Ela não gostava do quase e, mesmo acreditando no poder das palavras, ousou dizer: sem sua música, não consigo dormir. Funcionou, o moço passou a ligar sem falta. Cantava, a moça fingia que dormia, mas ficava era bem acordada, comemorando a própria esperteza. O moço agora não liga mais, nem de vez em quando, e a moça, que sempre dormiu muito bem, morre de arrependimento. Por que não inventou outra coisa qualquer? Foi-se o moço, ficou a insônia. Aqui se fala, aqui se paga.

13.11.06

promessa

Depois das brigas homéricas que levaram à separação, vieram as brigas por conta da pensão. Embora tivessem chegado a acordo quanto a valor e data, acordo passado em juízo, o ex-marido nunca pagava o que devia. A mulher não se conformava. Tanto tempo brigando com o marido, tanto sofrimento, e agora que ia ficar só com a parte boa, o dinheiro, nada. Todo mês era aquela agonia. A pensão atrasava, a ex reclamava, o ex sumia e o dinheiro, quando aparecia, vinha pela metade e olhe lá. Até que o marido pagou antecipado, cada centavo. A mulher comemorou. Finalmente tomou juízo, resolveu ser homem. Ou então vai é desaparecer e me deixar com o Paulinho e sem um tostão. Mas o ex não tinha intenção de ir a lugar nenhum. Desde os tempos do casamento, andava de olho na prima mais nova da ex. Tentou de tudo, mas a loura não queria conversa. Aí, apelou. Pensou em subir umas escadarias de joelho, passar um mês sem a cervejinha, largar tudo que era vício, mas, convencido de que só se consegue uma graça sofrendo pra valer, prometeu: pra ficar com a Marina, até pensão em dia eu pago, todo mês. Graça alcançada, promessa cumprida.

12.11.06

tia mirtes anda muito confusa

A avó foi com uma das netas, filha da Luíza e do João, visitar a cunhada. Ela anda muito confusa, Aninha, troca os nomes, trate de disfarçar. Depois do lanche, a avó e Tia Mirtes foram dar um passeio no jardim. Voltando pra casa, passam por uma moça sentada na varanda. Que linda, Mirtes, não conhecia essa sua neta. Não, Zilda, essa é a Aninha, filha da Luíza e do João. Não conhece, não? Ah, sim, claro, já fomos apresentadas. No carro, a avó comenta: coitada da Mirtes, anda tão confusa.

11.11.06

botafogo não é passagem

Dizem, os moradores e os detratores, que Botafogo é passagem. Injustiça. Botafogo pode até ter sido, mas não é mais. A prova é que Botafogo agora tem Lojas Americanas. Imagina se as Lojas Americanas iam se instalar numa passagem. E não é só. Botafogo agora tem C&A. Bairro que tem C&A, meu amigo, é bairro de categoria. Qualquer hora dessas, vão abrir um McDonald`s em plena São Clemente. Aí quero ver alguém ainda chamar Botafogo de passagem.

10.11.06

perna de coelho

Quando a psicóloga chegou no trabalho, encontrou a escola num alvoroço. Marcas de sangue pelo chão, professoras correndo dum lado ao outro, alunos, animadíssimos, contando detalhes da tragédia em versões cada vez mais dramáticas. O fato é que alguém havia arrancado a perna do coelhinho do jardim. O coxo, branquinho, branquinho, foi encontrado tingido de vermelho sangue - sangue mesmo. Que horror, disse a psicóloga, quem foi o desequilibrado que fez isso? Ainda estamos investigando. Pois quando descobrirem tragam direto pra mim. Vamos começar hoje mesmo um tratamento intensivo. Lá pelo meio da tarde, chegou a notícia de que o responsável havia sido encontrado. Ele disse que só queria arrancar uns pelinhos do coelho, mas a perna acabou saindo junto, informou uma aluna. Pois ele pode enganar os pais com essa conversa, não uma profissional, disse a psicóloga. O que estão esperando pra trazer a criança? Mal falou e viu a diretora no fundo do corredor, trazendo um aluno louro, lindo, carinha de anjo - seu anjo. Desesperada, a psicóloga se dá conta de que o monstro, o perigo pra toda a escola, é seu filho. Lança seu pior olhar ao menino e diz: vc vai se ver comigo, vamos resolver isso agora mesmo. Sob o olhar aprovador da assistência, sai arrastando o filho pela orelha e sussurrando: tá doendo, filhinho? Que nada, mãe, tá de levinho. Dali, foram direto pra casa, ver tv e aproveitar a tarde de folga.

9.11.06

surpresas

Se é certo que os jovens não conhecem nada de Mozart, Brahms ou, vá lá, Noel Rosa, mais certo é que os velhos não conhecem nada de nada.
Vovó, cansada de ouvir Janis Joplin gritar na vitrola, vem eufórica me mostrar o jornal do dia. Olha aqui, minha filha, por que vc não ouve esse cantor? Qual, vó? Esse aqui, música de qualidade, o jornal tá dizendo. Vira o jornal e me exibe, em página dupla, a clássica foto em preto e branco da Janis com a cabeça cheia de penas. Já tô ouvindo, vó, nós duas estamos.
Ok, a Janis tá meio ultrapassada, mas Cássia Eller, não. Acompanho minha tia-avó ao show da cantora. Titia não é fã da moça, foi só prestigiar a banda do neto, que ia abrir a noite. Cássia sobe ao palco, começa a ajeitar o microfone, e titia: cadê a Cássia Eller? Ué, tia, tá ali, sentada no banquinho. Onde? Tia, só tem um banquinho no meio do palco. Cássia começa a cantar e titia ainda não a identificou. Ali, tia, a que tá cantando. Não, mas é um homem! Titia acabou virando fã: adorei, esse Cássia Eller é bom mesmo!

8.11.06

tpm

A distinta senhora tomou o táxi no ponto de sempre. O motorista correu pra abrir a porta, perguntou como ela estava, se a rádio era do agrado, se deixava o ar ligado e, por fim, pra onde iam. Leblon, respondeu. Sim, senhora, pelo Jardim Botânico ou por Ipanema? A pergunta a irritou mais do que tudo na vida. A rigor, nem era uma pergunta, era um insulto, uma agressão. A senhora não ia deixar barato, não senhor. Precipitou-se em direção ao agressor e cravou-lhe uma mordida caprichada no braço direito. Não uma mordida de poodle, mas de rottweiler. Sabe-se lá como não arrancou pedaço. Feito isso, endireitou-se no assento e disse: sinto muito, é a tpm. Podemos seguir, Jardim Botânico ou Ipanema, tanto faz.

7.11.06

santo antônio

Da viagem à terra natal, Vovó trouxe doces para meus irmãos, um colar pra minha irmã e um enorme Santo Antônio de madeira pra mim. Estranhei, já que a casadoura da família é a caçula, mas Vovó explicou. Com ela, casamento é à moda antiga, as mais velhas primeiro. Por mim, pouco importa se minha irmã não se casar tão cedo. Ela é que não ficou lá muito satisfeita e tomou suas providências. Comprou seu próprio Santo Antônio e dedica-se a torturar o pobre de todas as maneiras. Já o meu tem vida boa. Vive entre a tv e o armário, de cabeça pra cima e com seu menino no colo. Não mexo com ele, ele não mexe comigo e ficamos assim. Vovó é que não se conforma. Não entende como o santo, morando comigo já há alguns meses, ainda não me arranjou um marido. Entra no quarto e vai logo falando, como se eu não estivesse ali: e aí, santo, como é que é? Sim, Vovó conversa com meu Santo Antônio. Desconfio que, na minha ausência, faça ainda mais. Imagino as ameaças terríveis, as pragas que não deve lançar contra o santinho. Pior, imagino as promessas. Uma espanada de tempos em tempos, um altar confortável pra morar... Santo Antônio, até agora, nada. Por isso sou amiga do santo. Não se vende fácil.

6.11.06

na vitrine

Minha amiga só fala espanhol, mas é valente. Veio me visitar em Paris e resolveu seguir sozinha pra Londres. Não quis cortar o barato de ninguém e me limitei a tentar evitar maiores imprevistos no território francês. Na véspera, fomos de metrô até a estação, anotando todas as conexões, compramos a passagem, localizamos a plataforma, ensaiamos tudo. A amiga garantiu que a minha companhia era desnecessária e, tendo feito o ensaio geral, achei que podia mesmo continuar dormindo. O trem partia às seis da manhã e a idéia de acordar às quatro e meia em pleno inverno europeu não era das mais empolgantes. No dia seguinte, dei um tchauzinho e voltei a dormir. A amiga arrastou a mala pelos intermináveis corredores, desceu as escadarias, atravessou o enorme saguão, não esquecendo de apertar o botão pra destravar o portão, e... ficou presa. No meu plano perfeito, não levei em conta que ele só abria às seis da manhã. Antes disso, só pela entradinha lateral. Não teria sido tão grave se a porta de entrada também não abrisse. Mas abriu e, pra voltar, só destravando por dentro. Quem destravaria àquela hora? A amiga primeiro tocou a campainha, inutilmente, gritou, inutilmente, chorou, também inutilmente. Afinal, se rendeu e aceitou o fato de que ficaria congelando num cubículo enquanto seu trem partia com um lugar vazio. Não seria tão grave se o portão não fosse de vidro. Cinco e cinco, passa o padeiro, tá a amiga na vitrine. Cinco e dez, o leiteiro, a amiga ainda na vitrine. Cinco e quinze, o jornaleiro, a amiga continua lá. Cinco e meia, uma pequena multidão observa a moça, que já estava até gostando da brincadeira e se divertia fazendo caretas e rebolando - pra se exibir e pra espantar o frio. Seis horas, vem a freirinha - sim, papai concordou com a viagem, mas me enfiou num alojamento de freiras. A amiga se lança nos braços da religiosa e, ciente de que seu espanhol não valeria de nada, repete freneticamente meu nome, caprichando no biquinho. Seis e cinco, não é um pesadelo, tem uma freira no meu quarto, puxando minha amiga pelo braço. A freira, num francês que, felizmente, só nós duas entendemos, descreve a performance da amiga. Graças a Deus, perdi a cena. Não sei se nossa amizade teria sobrevivido ao ataque de risos que ela me provocaria.

4.11.06

função dúplice

Vovô era maestro. Chefiava a orquestra nos bailinhos do clube de sua cidade. Do alto do palco, Vovô não bobeava. Ficava de olho nos casais mais assanhados. Assanhado, naquele tempo, era o pobre casal que dançava de rosto colado ou ousava trocar um beijinho na bochecha no meio da pista. Pois Vovô não dava folga. Parava a música, descia do palco e ficava encarando suas vítimas. Ele e o salão inteiro, naturalmente. A atitude gerava revolta nos jovens, mas Vovô não se importava. Aos que reclamavam, lembrando que ele era um maestro e não um bedel, respondia: minha função aqui é dúplice, tocar e fiscalizar. E recomeçava a música e a vigia.

3.11.06

a madame sempre vence

Todo dia é um suplício. A madame leva mais de três horas pra sair e passa as três ameaçando. Tô indo, hein? Então vamos? Pode chamar o elevador. Só os principiantes caem nessa. A madame não sai, não adianta. E quando sai, sai batendo a porta e tirando onda. Vc não vem, não? Não posso esperar. Se vc sai, a madame lembra que esqueceu só uma coisinha e te deixa do lado de fora, esperando de novo. Ora, vc pensa, é só sair mais tarde. Sim, mas nesse caso a madame não se lembra da coisinha e é vc quem tem que carregar depois. Não adianta se revoltar, o objeto abandonado é sempre essencial e sem ele o dia da madame não vale nada. E lá vai vc pela rua com um saquinho ridículo na mão. E se vc, espertamente, sai antes? Tá indo, meu amor? Dá pra me ligar quando chegar? Quero que vc resolva uns assuntinhos pra mim. Ah, vc pensa, então nem saio, fico em casa e pronto. Pois, prepare-se, a madame vai ligar pelo menos dez vezes, cada hora com um pedido diferente. Coisa do tipo abra a terceira gaveta da cômoda da direita, pegue o documento dentro do envelope azul, não tem?, ah, então abra a segunda gaveta da cômoda da esquerda e procure no envelope amarelo. E assim o dia todo. Melhor sair, então. Sair quando? Antes, durante ou depois? Não importa, a madame sempre vence.

1.11.06

celulares não são de outro mundo

A mulher é do tipo que só quer saber do que é bom e melhor. Só janta no melhor restaurante, anda no melhor carro, mora no melhor bairro e tem o melhor marido. O marido é bom mesmo, se desdobra, faz de tudo pra agradar. Deu pra mulher um celular que é, claro, o melhor. Olha como é bonito, meu bem, é o mais moderno. Tira foto e tem até tem comando de voz. Comando de voz? É, vc não precisa discar, é só falar o nome da pessoa e ele liga sozinho. Entregou o presente e foi tirar uma soneca. Quando voltou, a mulher estava de pé no meio da sala, gritando com o telefone. Tia Euflásia, Tia Euflásia! Olha pro marido. Esse celular é uma porcaria. Tia Euflásia! Por que, meu bem? Ele não liga pra quem a gente quer coisa nenhuma. Tia Euflásia! Mas, meu bem, pra quem vc está ligando? Pra Tia Euflásia, não tá vendo? A que morreu há trinta anos? Claro, a única Tia Euflásia que eu tenho. Tia Euflásia!Qualquer hora a mulher larga esse marido. Onde já se viu comprar um celular que não faz nem contato com o além?

31.10.06

o tkd é bom demais

Meninas, não percam tempo, adiram ao tae kwon do. O tkd é um esporte maravilhoso, dá força, flexibilidade, equilíbrio, tudo. Até aí, vcs pensam, grandes coisas, muito esporte dá. Mas o tkd tem uma vantagem que não é pra qualquer um. Sabe quando vc entra numa loja procurando uma meia e a vendedora vem te empurrando um casaco? Vc quer o vestido e ela tem um sapato que é a sua cara. E quando vc pede o biquíni e ela cisma de te vender chinelo, canga, bolsa, passagem de avião e férias na praia? Aí é que está. Vc vai comprar um top pro tkd e a moça diz: não quer ver bermudablusabolsatênis? Nessa hora, vc só responde: brigada, querida, é que eu uso uniforme. Tá, insuportável, calou a boca? Calou. Bom demais, o tkd é bom demais.

30.10.06

foto do noivo

A redação vem recebendo dezenas de fotos de jovens que afirmam ser o verdadeiro noivinho caipira. Na tentativa de desentupir nossa caixa postal, resolvemos publicar uma das fotos como sendo a do noivo, que, na realidade, só existe na nossa imaginação. Podem parar agora, rapazes.


29.10.06

pro noivo aposentado

O noivo, agora muito bem casado, já foi o terror das mocinhas. Não há quem não tenha conhecido - muitas de perto, outras, infelizmente, só de longe. As recusadas nunca se recuperavam do golpe. Ser recusada pelo noivo era ganhar um selo de má qualidade. Moça rejeitada por ele podia desistir que não arranjava outro. O noivo não bobeava, não. Rejeitava moça só em caso de muita falta de formosura. Ainda assim, as eleitas se sentiam especiais, como se fizessem parte de uma irmandade. Todas queriam entrar, as que entravam não queriam sair. O que nenhuma nunca soube é que o noivo já recusou a própria noiva. Na verdade, ele se casou duas vezes. Uma há pouco tempo, numa igreja mesmo. Outra, quando criança, numa festa junina. O casamento foi perfeito até a hora do beijo. Na hora H, o noivo, que depois nunca mais dispensaria moça alguma, não quis saber de beijar a noiva. E olha que era a caipirinha mais bonita do arraial. Ora, casamento sem beijo não é casamento, e os convidados não se conformaram. Insistiram daqui e dali, mas não teve jeito. O noivo empacou pra valer. Nisso, o padre, que era padre, mas não era bobo, tascou ele próprio um beijinho na noiva. A noiva, que também não era nada boba, aceitou de bom grado o beijo do padreco assanhado e foi-se embora com ele. O noivo não teve moral pra reagir, mas aprendeu a lição e resolveu nunca mais dispensar beijo nenhum. E foi assim, senhoras e senhoritas, que o noivo se transformou no maior arrasa-corações que já se viu. Tudo graças à noiva.

27.10.06

por que não no sofá?

O dono da sala chegou. O dono da sala fica sempre furioso quando me flagra dormindo no sofá. Não compreende o prazer de uma soneca sem compromisso no sofá da sua sala. O dono busca sempre o motivo, a explicação pra tamanha falta de civilidade. Busca em voz alta, claro, aos berros com quem quer que esteja passando. Nunca me questionou diretamente, nem ousou me acordar. Pelo menos, pensa que não. Eu fico bem quieta, esperando a fúria passar e descansando um pouco mais. Gostaria de saber o que o dono vê de tão misterioso numa dormidinha na sala, mas também nunca me meti a perguntar. Prefiro não me comprometer, fingir que não sei que ele detesta meu hábito. O dono da sala ainda não me viu. Breve vai haver a explosão.

pessoal

Fomos almoçar no restaurante australiano da moda, aquele da batata maravilhosa e filas intermináveis. A saltitante garçonete vem nos cumprimentar. Tudo bem, pessoal? Tudo bem, pessoal, penso. Já escolheram, pessoal? Ainda não, pessoal. A Pessoal passa o almoço inteiro assim, pessoal pra cá, pessoal pra lá. Numa tarde, deve usar a palavra umas quinhentas vezes, por baixo. Eu, no meu trabalho, gasto no máximo uns dez excelências por dia. Mesmo assim há quem reclame. A Pessoal certamente ficaria horrorizada. Como assim, pessoal, vc chama alguém igualzinho a vc de excelência? A palavrinha mágica, que tantos egos afaga, nuca me incomodou. Ao contrário, acho que mantém a ordem e evita o uso inadvertido de um pessoal ou coisa pior. Nunca me incomodou antes da Pessoal. Agora, chega a me alegrar. Deus me livre de ter que passar o dia dizendo oi, pessoal, tchau, pessoal. Prefiro meu excelência.

25.10.06

natação

Cartinha da linda e esbelta prima Laura, que tem o dom e não sabe:

mari, pra vc que teve acidentes com seu esporte e passou sério apertos, aí vai um depoimento para dizer que vc não está sozinha!!! Tudo começou quando eu sai das minhas aulas de hip-hop e passei muitos meses sem fazer coisa alguma. Até que a situação chegou a um ponto no qual eu tive que adimitir que estava um pouco cheinha, na verdade eu estava ( estou ) bem gorda mas minha mãe diz " cheinha", então ultilizo este termo , e estava cansada de ficar sem fazer nada, por isso tive que arranjar algum esporte. Não sou como o leonardo que tem um esporte de paixão , eu não tinha a minima idéia o que fazer, só sabia que tinha. meus pensamentos voaram alto: nado cincronizado? lutas? dança ? basquete ? handbol ? ............ NATAÇÃO!!!!!! Não que eu goste, mas como é uma atividade que eu já fiz e eu era boa escolhi ela. Depois veio outro dilema. aonde fazer natação??? fui ao fluminense primeiro mas era muita gente, as pessoas afogavam umas as outras, cruzes!!! depois fui a swim center( academia ao lado da minha casa) mas a piscina era muito pequena com um impulso chegava ao outro lado, e finalmente, jockey o escolhido. para eu entrar na aula eu tinha que fazer um teste para ver qual a turma que eu ia entrar, e para eu fazer esse teste minha mãe escolheu uma tarde feliz , pacifica, até meu irmão foi junto pra me dar apoio. cheguei lá orgulhosamente sem conhecer ninguem, e na mesma hora eu tive a impressão que todos os que nadavam (eram muitos) param de nadar e me encaram com um cara feia dizendo "quem é essa estranha???" , mas tudo bem aquilo não me abalou, fui ao vestiario me troquei, coloquei uma toca emprestada e entrei na piscina. foi um longo caminho do vestiário a piscina,toda aula é. minha banha vai balançando ou pelo menos eu acho que vai , é duro.... mas enfim entrei na piscina ai tinha que nadar crau , ida e volta. fui rápida no começo mas fui ficando ofegante e quase naum chegei do outro lado, mas fiz a volta toda . quando chegei quase sem conseguir falar,bufando , olhei para a arquibancada e vi meus dois parentes me dando apoio, minha mãe dizendo : "foi otimo minha filha!!!" e meu irmão tendo um ataque de risos que a muito tempo eu não o via ter. Mas depois que o teste acabou orgulhosa de não ter desmaiado (tive que disfarçar que não estava cansada) comprei meu oculos e minha toca e me matriculei pra valer na natação. E até hoje eu tenho estado firme e forte tirando o episodio em que o professor pediu para eu nadar borboleta mas eu nem sabia o que era isso então inventei, mas quando chegei ao outro lado ele estava rindo muito , e quando eu sempre erro o nado ele fica me explicando fora dágua é muito patetico só vendo pra crer.Sabia que eu até fiz uma amiga??? É isso mari espero que esse relato tenha feito voce se sentir melhor, pena que não tive um herói para me tirar desses momentos vergonhosos
beijão laura
ps: essas situações pelas quais eu passei só não se comparam quando a prof. na sala de aula na frente de todo mundo me perguntou quanto era 24 divido por 3 e eu não sabia, ou quando veio uma borboleta em cima de mim no passeio e eu levei um susto e cuspi todinho na minha bolsa novinha e na minha blusa e todo mundo ficou com nojo de mim o resto do dia

24.10.06

vovó agora nega

Fiquei presa numa estrada indiana por conta de uma vaca preguiçosa. Com Vovó. Enquanto esperávamos a boa vontade da divindade, Vovó e o guia tagarelavam em animado portunhol. Jamais saberei como chegamos a esse ponto, mas lá pelas tantas Vovó resolveu explicar como se faz doce de sangue de boi no Brasil. Eu não conhecia o doce e não podia imaginar momento mais inconveniente pra conhecer. O boi é marido da vaca, e a vaca, como se sabe, é sagrada na Índia. O guia, estupefato, perguntou: mas de sangue de boi? E Vovó: pode ser de vaca, tanto faz. O guia fez cara de quem não estava acreditando, na barbaridade brasileira ou na desfaçatez de Vovó. Implorei a ela que parasse, mas esse é o tipo de pedido que tem efeito contrário e Vovó, claro, empolgou-se ainda mais. Dali em diante, resignei-me, sabendo que nada poderia detê-la. Encravei profundamente as unhas na coxa direita, buscando, com a dor física, compensar meu desconforto. O guia, cada vez mais verde, também aguentou firme enquanto Vovó descrevia os detalhes do ritual: o corte, a sangreira, a agonia do bicho, que tornava o doce ainda mais gostoso. Tudo diante da simpática vaquinha que se espreguiçava a nossa frente. Vovó agora nega. Diz que o sangue não era de boi, mas de porco, que nunca falaria de sangue de vaca na frente de um indiano e tal e tal. Celebremos, então. O horror nunca existiu, a estrada engarrafada nunca existiu, se bobear nem a viagem à Índia existiu. Posso finalmente dormir em paz. Foi tudo um sonho ruim e essa cicatriz na coxa direita saiu sabe-se lá de onde.

23.10.06

pra flor sonolenta

A apresentação de final de ano, pra qual nos preparamos por tanto tempo, havia finalmente acontecido. Interminável, como sempre ocorre quando todas as alunas de todas as classes da academia de balé têm que dançar uma, quem sabe duas vezes. Não me lembro do meu papel. Certamente, fui um coelhinho, ratinho, qualquer coisa assim. Irrelevante, como tudo mais naquela noite. As alunas brigaram por seus papéis, ensaiaram horas a fio com professoras tiranas, mas no dia seguinte só o que importava era a dança das flores. Pequenas bailarinas deitavam-se dentro de enormes flores de papel colorido, levantavam-se, davam um ou dois passinhos pra deleite dos pais orgulhosos e voltavam pra flor enquanto as mais velhas dançavam. Pois uma das florzinhas dormiu, não resistiu até o fim da dança. A coreografia acabou, as alunas se retiraram e a florzinha teve que ser resgatada pela desconsolada professora. Só se falava nisso. O lindo cenário foi esquecido, a música, o figurino, o desempenho exemplar das alunas, nada tinha importância. Só o que contava era a flor. Imagino como deve ter sido difícil pra ela enfrentar as aulas seguintes, recheadas de gozações. Imagino que deve ter odiado o papel, os ensaios, o dia em que entrou na academia e mesmo o dia em que nasceu. Sinto um pouco de pena da flor sonolenta por isso. O que mais sinto, no entanto, ainda hoje, é inveja. Eu teria dado tudo pra ser uma daquelas flores e dormir em pleno palco.

21.10.06

celebrando a primeira semana

Fui ver meu professor de tae kwon do lutar. Na verdade, fui ver o campeonato, nem sabia que ele ia estar lá. O fato é que o professor se sentiu honradíssimo e, após receber meus cumprimentos pela vitória na faixa preta, declarou, delirando de emoção: obrigado pela presença, o atleta precisa desse apoio. Achei melhor não esclarecer. Espero que não esclareçam também, mas, diante das mensagens recebidas ao longo da semana, só me resta dizer, delirando de emoção: obrigada pela presença, o artista precisa desse apoio!

20.10.06

presa nas ferragens

Depois de semanas me recuperando do horrível tombo na banheira, volto à vida normal. Tô eu lá no curso, concentrada, anotando tudo que o professor diz, minha caneta cai. Podia ter levantado pra pegar, mas é muito mais fácil esticar o braço. Podia ter reconhecido que minha mão não chegava lá, podia, mas preferi esticar os dedinhos. E triunfei. Fui rolando a caneta pouco a pouco, tava quase... sabe quando o jogador chuta de fora da área, sem chance pro goleiro? Pois é, não teve jeito, caí com tudo. Agora imagina a cena: uma sala lotada, subitamente uma aluna desaparece. Corta pro chão, tá lá a aluna, espatifada, enroscada na carteira, presa nas ferragens. Tenta se levantar. Como? Já viu cavalo quando cai, besouro de barriga pra cima, perninhas para o ar? (Obrigada, meu deus, não estava de saia) Vinha passando outra aluna: desculpa, desculpa o quê?, não vi que vc tava caindo, tudo bem, também não. Levantei com calma e classe, fingindo até um certo tédio, como se alunos e carteiras despencassem juntos todos os dias. Passei o resto da aula pensando que o pessoal das últimas filas vai todo passar na prova. Não há como ver uma cena dessas e não cair na gargalhada. Não há. Ninguém deu um pio. Quem consegue isso, consegue qualquer coisa. Eu não agüentei. Gargalhei horrores por dentro. Eu sou a prova viva de que um raio cai duas vezes, sim, no mesmo lugar. Começo a ficar com medo de que ele possa cair várias vezes. E eu idem.

19.10.06

horácio

O mendigo maluco mora no meu bairro desde que eu nasci. Às vezes na minha rua, às vezes em outra, está sempre por aqui. Cada vez mais alienado, o mendigo imundo gasta o dia praguejando em silêncio, apontando o dedo na cara de quem passa. Nos últimos tempos, o mendigo andava sumido. Agora descobri a razão. Quem contou foi um morador do bairro que cuida do mendigo, arranja comida, corta as unhas, dá um banho quando consegue. O protetor assumiu essa função há mais de trinta anos. Estava com ele quando o mendigo passou mal e deu entrada num hospital público. Deu entrada, mas não deu saída. Sumiu, o mendigo sumiu. Ninguém sabe dele. O protetor, desesperado, já rodou hospital, vizinhança, IML, já fez de tudo. O hospital não sabe nem dizer se o mendigo morreu. Pode estar morto, fugido, perdido, pouco importa. O hospital público é um buraco negro, engole os pacientes e assunto encerrado. Eu agora ando na rua procurando o mendigo. O protetor não se conforma e eu também não. O bairro não pode se conformar. O Horácio tem que voltar.

18.10.06

derrubando o mestre

Ele é faixa preta, eu sou branca. Não importa. Derrubei o mestre com um golpe só, logo no nosso primeiro encontro. Quando entrei no tae kwon do, o mestre estava competindo na Coréia. Tempos depois, chegou o dia da nossa primeira aula. Achei o mestre maravilhoso, invencível, um verdadeiro samurai. No fim da aula, parti pro vestiário, disposta a nunca mais treinar com outro. Eu era a única mulher naquele dia, então aproveitei o espaço todo só pra mim, fiquei horas, me espalhei. Tô lá espalhada quando sinto uma movimentação na porta, seguida daquele barulhinho de lá vem desgraça. Tranquila e infalível como Bruce Lee, agarro minha calça, jogo em cima do corpo e me cubro da melhor maneira possível. Não fosse pelo culotinho e pela ponta da calcinha aparecendo, ninguém nem diria que eu estava pelada da cintura pra baixo. Olho pra porta e vejo o mestre entrando pelo vestiário. O olhar de horror que ele me lançou, nem a mais feia, gorda e celulitada mulher arrancaria de um homem comum. Aquilo é olhar faixa preta, só mestre consegue. Ele chega cambaleou pra trás, levou um soco no plexo, um chute na cabeça, todos os golpes que eu conheço e os que não conheço ainda de uma vez só. Bateu a porta na minha cara com tudo e gritou, já à distância, desculpa, tranca a porta. Tranquei, o mestre mandou, eu tranquei, mesmo com o leite já totalmente derramado. Fiquei ali dentro, curtindo o constrangimento do mestre, coitado (eu, tratando-se de médico e mestre, não tô nem aí). Pra se ter idéia, o mestre pede licença toda vez que me toca. E olha que ele me toca umas setenta vezes por aula. Pega na perna, licença, puxa o braço, licença, ajeita a barriga, licença. Tenho vontade de dizer relaxa, mestre, pode levar. Dei um tempo pro mestre dar uma volta, beber uma água, e saí. Fui assinar minha presença, toda natural. O mestre, também fingindo naturalidade, como se pudesse me enganar, pediu desculpas, explicou que sempre entra nos vestiários antes de fechar a academia pra recolher algum pertence esquecido, apagar as luzes, além, claro, de flagrar alunas desprevenidas. Disse que não viu que eu ainda estava lá, que eu tinha que trancar a porta sempre, se desculpou de novo e tal. Falei que ele não precisava se desculpar, imagina, eu que eu que tinha esquecido de passar o trinco. Falei isso, mas minha vontade era outra. Tive que me segurar pra não agradecer por ele ter me ensinado o mais genial dos golpes. Nas competições futuras, se é que virão, quando me vir apertada, nada de morder orelha. Abaixo o dobok (quimono, pros não iniciados) e pronto, derrubo o inimigo. Vou ser campeã fácil.

17.10.06

a ira da mulher casada

Eram todos amigos. Paula, Pedro, Luís, a mulher casada, o marido da mulher casada. Pedro havia decidido cortar os longos cabelos e o assunto era esse. Pedro discutia o estilo, o tamanho, comparava-se aos galãs da novela das 7, das 8, a todos os galãs. A conversa já ia longe quando Paula resolveu opinar. Por que vc não corta como o do marido da mulher casada?A mulher casada olhou para Paula. Então Paula olhava pra seu marido, então conhecia seu corte de cabelo. Sim, o corte era o mesmo há anos, mas isso não importava. Paula havia olhado pra seu marido, certamente pensava nele, sonhava com ele, ia roubá-lo na primeira oportunidade. Não disse nada. Levantou-se, esticou a mão e acertou um único tapa na cara de Paula. Um tapa definitivo, que mostrava quem era quem e quem era de quem. Eram todos amigos. Ninguém disse nada e cada um saiu pra um lado. A Paula diz que foi só um comentário. Só, na cabeça dela. A Paula não sabe que cabeça de mulher casada tem outra medida. Só, pra mulher casada, é não olhar, não falar, de preferência, nem pensar. A Paula não sabia. A Paula também não sabe ainda que, vencido o enorme hematoma que ela agora ostenta na cara, vai carregar pra sempre uma marca, uma cicatrizinha causada por um dos inúmeros anéis que cobriam a mão certeira da mulher casada (terá sido a aliança?). Marca de mulher que fez o que não devia, marca de mulher que olhou pro homem amigo, pro homem alheio. A Paula não sabia que não podia. A irada mulher casada também não sabe, mas, todos os dias, quando a Paula se olhar no espelho, vai pensar no homem dela. A mulher casada nem desconfia. Quantas não terá marcado e quantas ainda não marcará com a lembrança do seu marido?

16.10.06

celulares de outro mundo

Vovó diz que passou a acreditar mais nas almas depois da invenção do celular. Alguns celulares parecem mesmo coisa de outro mundo, mas a declaração me chocou. A explicação, mais ainda. Vovó, católica fervorosa, confessa que não sabia onde as almas acumuladas ao longo dos séculos ficavam esperando o Juízo Final, o que a fazia duvidar um pouco da coisa toda. Depois do celular, Vovó não duvida mais. Se milhões de ligações se cruzam no ar, se um sujeito no Brasil liga pra outro no Japão, enquanto o da Índia fala com o do Canadá, se milhares de sujeitos ligam pra milhares de sujeitos ao mesmo tempo, se há espaço pra todas as ligações, há espaço também pras nossas almas. Podemos dormir tranquilos. Estão todas, com certeza, guardadas em algum lugar.

14.10.06

me liga

Titia nos conta que viu um conhecido do outro lado da rua. Acenou, fez sinal de me liga, mas o sujeito fez cara de quem não entendeu. Afinal, pergunta, que gesto vcs fazem pra pedir que alguém ligue? Ué, fecho a mão, deixando o mindinho e o dedão de fora, e encosto na orelha. Titia, não. Titia fecha a mão, estica o indicador e faz voltinhas no ar. Titia não é nem do tempo do telefone de teclas. Titia é do tempo do telefone de disco, que esfolava os dedos dos mais insistentes. Eu também sou desse tempo, confesso, mas não dou pinta. Me liga, comigo, é só na base do hang loose. Com os demais ouvintes também. Diante da pergunta, todos apontamos o mindinho pra um lado e o dedão pro outro e colamos a mão na orelha. Todos, menos vovó. Vovó fecha o punho e roda o braço. Vovó é do tempo da manivela.

cavalo vermelho

A visita traz um presente e ele é colocado em lugar de destaque, já reservado pros presentes novos. Com o tempo, vai se deslocando pela sala até passar pro quarto branco. Dali, segue pro sítio ou, pior dos destinos, pra fazenda. A fazenda é o fim da linha, presente quando vai pra lá é porque é muito ruim mesmo. Há presentes que são verdadeiros testes de resistência. Suportar aquela peça horrível no meio da sala não é fácil, mas a dona da casa aguenta firme. Volta e meia alguém ainda pergunta onde ela comprou aquele objeto tão bonito. A dona da casa abre um sorriso e diz: não é lindo? Foi Fulana que me deu. Às vezes, a peça já está no quarto branco, pronta pra seguir viagem, quando o presenteador resolve aparecer. A dona da casa limpa a peça, coloca no melhor lugar da sala e finge que nunca a tirou dali. Mal a pessoa vira as costas, quarto branco de novo. Nós conhecemos o mecanismo. Todo presente recebido é uma brincadeira nova. Ficamos controlando, vendo quem conhece ou não o gosto da dona da casa, apostando quanto tempo cada objeto sobrevive na sala. O cavalo vermelho é o destaque do momento. O sueco que o trouxe já partiu há meses e tão cedo não volta, mas ele continua ali. A dona da casa gostou do cavalo vermelho. Ele pode não estar mais no lugar de destaque, pois lá só ficam os presentes recém-chegados, mas continua na sala. A expectativa dos primeiros dias até já passou. Agora, quando chego, apenas confirmo que o cavalo está lá. Nem tem mais graça. O cavalo vermelho cedo ou tarde perderá seu lugar, como tudo na sala mutante, mas é, desde já, um dos nossos grandes campeões.

13.10.06

viublógui

Os desafio que a pessoa comum enfrenta pra configurar um blog... Cada passo é uma novela, perde-se um dia inteiro só pra dar conta do básico. É um tal de preview, save, view blog, preview, save, view blog, save, view blog, save, view blog, viewblog, viublog, viublógui. Minha filha vai se chamar Catarina. O filho, tô pensando em chamar de Viublógui.

12.10.06

meu herói

Machuquei meu dedo num chute mal calculado na mão de samurai do meu mestre. Ele passa bem, nem sentiu. Eu passo mal, mas alguns dias de imobilização hão de resolver. Adoraria dizer que houve uma fratura dramática, mas foi só um contusão forte mesmo. Isso tudo é detalhe. A bola roxa no pé é detalhe, a brava entrada no centro médico, arrastando o membro danificado, é detalhe, a cadeira de rodas em pleno Barrashopping, arrebanhando tantos olhares e sorrisos caridosos, é detalhe, o raio x na ala infantil, cercada de crianças e bichinhos, é mero detalhe. Tô escrevendo pra saudar meu héroi. Tô lá sentada na academia, com um sacão de gelo no pé, quando vejo entrar Marena e Miguel. Tinham ido conhecer a academia. Tudo desculpa pra me ver lutar. Tento levantar e quem disse que o pé firma no chão? Derrotada, resolvo pegar um táxi e os dois fazem pouco caso, dizem que é tão pertinho, logo ali. Logo ali pra quem não tá fazendo força pra não chorar, mas tudo bem. O Miguel argumenta que tá muito trânsito, vai demorar horas, por que eu não vou no colo dele? Só pode estar de gozação com a minha cara, né? Mas ele insiste, eu não tenho um tostão e resolvo ver até onde ele vai. E não é que veio até a minha casa? Dá pra imaginar a cena? Eu, de cavalinho, pelas ruas. O Miguel arfava, mas, como o saudoso Bretão, resistia. Marena nos acompanhava na maior naturalidade, de vez em quando arrumando o chinelo que ameaçava cair do meu pé. Admito que a presença da Marena me deu uma certa tranquilidade. Não era uma doida na garupa do namorado. Era uma moça digna, ferida, sem alternativa. O Bretão - ai, desculpa, Mi, fui pensar no Bretão e agora vou ter que te chamar assim, mas quem conheceu o bicho sabe que é um elogio - quase refugou na ladeirinha de entrada do meu prédio, mas honrou o apelido e foi em frente. Visualizem a cena. Eu, passando pelos porteiros, gloriosamente montada no bravo louro que ofegava logo abaixo. Alguém já subiu 20 andares de elevador nessas condições? Tralalalá, dá um super efeito na freada. Continuem visualizando. Eu, entrando em casa, ainda no louro, bem no meio do jantar. Mamãe, papai, vovó, irmãos, a turma toda. Não entenderam, acharam que era brincadeirinha. Não perceberam que o Br..., quer dizer, o Miguel realmente me trouxe pela rua. Até eu fiquei cansada. É duro manter a posição montando a pelo. Chegamos os dois encharcados. O Miguel, do esforço. Eu, dele. Bom, o textinho é pra homenagear meu héroi, pra agradecer, pra registrar o feito histórico. Também pra dizer que tomei gosto. Se alguém se candidatar, estou às ordens. Podemos até organizar um campeonatozinho, um "Não deixe a balzaca cair". Quem se habilita?

um blog por timidez

Um blog por vergonha de mandar o que escrevo a um monte de gente, ainda que peçam. Um blog porque sabe-se lá se querem mesmo e é chato ficar enviando textos goela abaixo de todo mundo. Um blog porque assim só me lê quem quer.