30.3.07

que país é esse?

O programa do dia seguinte é uma caminhada pelos arredores da cidadezinha. À noite, ligam a tv pra conferir a previsão do tempo. A mocinha começa com a capital: a meteorologia previu para hoje sol pela manhã, possibilidade de chuva no início da tarde, calor à noite. Não choveu e a noite está fresca, acrescenta. Continua relatando em detalhes a previsão do dia pro país inteiro e o efetivo comportamento do tempo. No fim, quando já subiam os créditos, acrescenta: amanhã deve fazer sol.

28.3.07

mosquitos da barra

Estavam naquela fase de deixar no outro milhares de marcas. Da tradicional no pescoço às mais discretas, na barriga ou na sola do pé. O cenário era quase sempre a Barra, não se sabe bem por quê. Um dia, o rapaz se empolgou além da conta e fez nas pernas da moça uma série de marcas, enormes e inconfundíveis. Pra disfarçar, ela entrou em casa reclamando de mosquitos. Que a Barra estava insuportável, que era mosquito pra todo lado, que olha só como ela estava. E o pai, de olhos nos roxos: é, minha filha, esses mosquitos da Barra são famosos. Não tem namorada que escape.

26.3.07

e vai entender a vovó

Se Vovó fosse católica, teria que deixar de ser. Ou não poderia passar a vida culpando a Santa Igreja pelos males do mundo. Ou não poderia fazer pouco do Papa. Ou teria que engolir todas as críticas. Se Vovó fosse católica, sua vida não teria graça. Como não é, Vovó se diverte. Implica com a Igreja o dia inteiro, aproveita qualquer deixa pra encaixar o assunto. Começa já no café. Passa do pão ao iogurte falando mal do Papa. Entra pela gelatina falando mal do Papa. Chega ao mamão falando mal do Papa. Nessa etapa, acrescenta: olha, quem come mamão todos os dias é o Papa. O Papa sabe das coisas. Se ele come, é porque é bom.

23.3.07

o vírus

A mãe vivia de regime. Descobria os mais mirabolantes: da cerveja, da gordura, do chocolate... Curiosamente, não emagrecia nada. Às vezes, fazia uns de saladas e grelhados, mas nem esses adiantavam. A mãe não entendia por quê. Se todo mundo faz dieta e emagrece, por que logo ela, que só dava umas escapadinhas, não perdia nem um quilo? Um dia, descobriu a razão. Saiu eufórica pela casa, sacudindo o jornal. Tá aqui, ó! A culpa é dele. De quem, mãe? Do vírus! O vírus da engorda, o vírus que vem na poluição. Já reparou como nos centros urbanos as pessoas são mesmo mais gordas? E eu aqui me torturando sem saber que carregava um vírus invencível! Pronto, agora acabou regime. Sou uma pessoa doente, tenho que me cuidar. Pega ali o pudim pra mamãe. Mas, mãe, por que que esse vírus foi atacar logo vc? Porque nós vivemos na rua mais poluída da cidade! Toda hora dá no jornal. Vc precisa se informar, meu filho. Mas por que só vc na rua inteira? Porque nosso prédio fica bem ao lado do depósito de lixo, e nós moramos logo no primeiro andar. Tá vendo? Faz sentido. Ai, por que não descobriram isso antes? Mas, mãe, e por que que aqui em casa esse vírus só atacou vc? Isso, meu filho, a ciência ainda não sabe explicar.

21.3.07

meu primo me contou

Meu primo Pedro me contou que uma amiguinha leu na escola uma crônica escrita pela amiga da mãe. Chamava-se Mariana, a amiga. O texto falava de uma moça presa no banheiro de um shopping. Coincidência, também já escrevi sobre isso. E não é que a heroína da Mariana amiga da mãe da amiga do meu primo se chamava Aninha, nome que volta e meia aparece nas minhas crônicas? E não é que a Aninha dela teve uma dor de barriga tão terrível quanto a minha? E o final, que engraçado, também era igualzinho. Eu e meu primo recitamos juntos as últimas palavras. Comecei a achar que podia ser eu a tal Mariana, que o texto lido pela filha da amiga era meu. Estava tentando lembrar se tenho alguma amiga mãe de uma Fernanda quando meu primo me destruiu. Falou o título: Uma Verdade Inconveniente. Poxa, o meu é Plano Perfeito. É, acho que essa Mariana não sou eu, não.

19.3.07

seu sutiano

A neta bate na porta do banheiro. Vó, seu sutiano. A avó, comovida com a declaração inesperada, responde: também te amo, minha netinha. Não, Vó, seu sutiano. Eu sei, meu amor, Vovó também. Abre, Vó, seu su-ti-a-no! Querida, Vovó te ama muito, mas agora está no banho. Vencida, a neta pendura o sutiã na maçaneta e volta pra tevê. Da janela, a avó grita: Inês, esse sutiã vem ou não?

15.3.07

às gargalhadas

Os primos mais velhos é que eram os tais. Guga bem que se esforçava para acompanhá-los, mas ficava sempre pra trás. Era o caçula, a criança. Amigo dentro de casa, desconhecido do lado de fora. Um dia, Guga finalmente fez sua primeira viagem com os primos. Foi uma semana de farra, em que Guga, fascinado, acompanhava e imitava cada passo dos mais velhos. Mal conseguia disfarçar a inexperiência, especialmente com as meninas, mas se esforçava. Acabava sempre sozinho, mas, na última noite, surpreendeu. Não só foi o único a conquistar uma das moças, como conseguiu logo a mais bonita e mais loura de todas. Espantados, os primos até cederam o quarto pra Guga namorar melhor. Ele foi, assustado, mas eufórico. Na manhã seguinte, foi difícil satisfazer a curiosidade dos primos. Deu tudo certo, disse. Pelo menos, não aconteceu nenhuma tragédia. Acontecer, aconteceu, mas Guga só descobriu mais tarde, quando deu pela falta da carteira, com todo o seu dinheiro dentro. Ter perdido a carteira, os dólares e o santinho que guardava desde pequeno não foi tão ruim. Duro foi aguentar a gozação dos mais velhos. Duro foi ouvir, e acreditar, que se a moça não fosse uma ladrazinha, se não estivesse interessada só no roubo, nunca teria sequer sorrido pra ele. Duro foi pensar que ela estava agora às gargalhadas, torrando o dinheiro todo. Foi duro, mas Guga sobreviveu. Depois de uns dois dias, já nem se lembrava de mais nada. Ah, antes que eu me esqueça, a carteira ficou jogada atrás da tevê. Quem descobriu foi a arrumadeira, ao preparar o quarto para o próximo hóspede. Torrou o dinheiro todo, às gargalhadas.

12.3.07

passatempo

Depois de ano e meio de preparativos, havia chegado o grande dia. A noiva entrou radiante na igreja lotada, se deliciando com cada detalhe. Enquanto ouvia as palavras do padre, pensava na inveja que as convidadas solteiras estariam sentindo. Admirava a decoração, perfeita, com cascatas e cascatas de flores caríssimas. Saboreava o impacto causado pela daminha, realmente a mais linda que já tinha visto. Lembrava o orgulho do noivo ao vê-la desfilar, parecendo uma princesa no vestido todo bordado. Mal podia esperar pela segunda etapa, a festa. Foi antecipando os cumprimentos, a valsa, o jantar, a alegria da amiga encalhada que, com sua ajuda, ficaria com o buquê. Já estava pela lua-de-mel quando o padre afinal fez a pergunta e ela respondeu que sim, que queria, sim, se casar com o noivo. Viraram-se para trocar alianças e ela achou lindo quando o padre pediu que, antes, exibissem as mãos, o símbolo da união, para os convidados. Frente a frente, esticaram os braços, mantendo as mãos suspensas, encostadas uma na outra. Subiu a música e ela ficou ali pensando que aquele era o momento mais bonito da sua vida, que não poderia ser superado nem pelo nascimento dos filhos, cujas carinhas já começava também a imaginar. O noivo, brincalhão, ameaçava abaixar o braço e ela fazia que não com a cabeça, rindo. E agradecia a sorte de ter um noivo tão bem-humorado. Depois de alguns minutos, percebeu que o braço do noivo tremia sem parar e ameaçava despencar de verdade. Daí pra frente, só pôde pensar nisso. Sabia que a música ainda estava longe do fim quando o noivo, suado e um tanto pálido, avisou que suas forças tinham se esgotado. Apavorou-se, pois a igreja inteira morreria de rir se interrompessem a cena antes da hora. O noivo argumentou que o braço estava duro, cheio de cãimbras, mas ela implorou que ele agüentasse só mais um pouco. Apaixonado, o noivo atendeu. Quando a noiva já comemorava o fim da sinfonia, o noivo não resistiu e caiu. Caiu pra trás durinho, mantendo esticados o braço e a mão, como prometido. A confusão aí se instalou. Foi um tal de socorrer o noivo, de abanar a noiva, que já ia desmaiando também, de conter o chilique do cerimonialista, que o casamento acabou ficando por aquilo mesmo. O padre sorriu, satisfeito. Antes de dormir, riscou na lateral da cama mais um tracinho, o vigésimo segundo, pelo vigésimo segundo casamento interrompido no último instante. Arruinar casamentos, seu passatempo preferido.

10.3.07

eu te amo

Ângela jurava que era ele, sem nenhuma dúvida. Pretendentes não faltavam, mas ela só queria saber do olhos azuis. Vivia a sua espera, embora nem se conhecessem. Era justo isso que a encorajava. Tinha certeza de que quando se olhassem a paixão ia ser instantânea. De fato, um dia se encontraram e os olhos azuis grudaram nela. O dono dos olhos se aproximou, puxou assunto, deu a maior bola, como Ângela sabia que aconteceria. Foi aí que ela se apavorou e deixou escapar a grande chance. Bem que os olhos passaram a noite vidrados nela, bem que o dono se sentou sozinho, como que guardando lugar pra ela, mas Ângela, que pena, não encarou. Daí pra frente foi só amargura. Havia desperdiçado o momento único e agora só lhe restava esperar que aqueles olhos, de tão apaixonados, descobrissem seu endereço e aparecessem de repente num cavalo, e mandassem rosas todos os dias, e escrevessem cartas apaixonadas, e cantassem pra ela milhares de músicas, as mais bonitas, pra compensar sua agonia. Ângela foi definhando com a expectativa. Não pensava em mais nada, não tinha fome, não ria, não dava atenção nem pro Vítor, o lindo filho pequeno. Só não perdeu a esperança. Um dia, ao pé da porta, encontrou o que tanto esperara: um bilhete do olhos azuis. O bilhete que ia lhe devolver a alegria, a disposição, o interesse na vida, no trabalho, até no filho. Dizia, numa familiar caligrafia infantil: Ângela, eu te amo, assinado Chico Buarque.

3.3.07

receita

Pra despertar a inveja alheia, misture: um bom apartamento, o carro do ano, um namorado bonitão e, convenhamos, rico, um excelente emprego, uma bela conta bancária, um corpão. Mexa devagar e adicione: tendência a emagrecer, viagens ao exterior várias vezes por ano, nome em tudo quanto é lista vip. E o ingrediente que, sozinho, vale por todos os outros: uma cadeira no Maracanã. Nada provoca mais inveja do que a tal cadeira. Em dia de jogo, então, o dono da cadeira é o dono do mundo.

1.3.07

mas é verdade

O castelo ficava no alto do morro. Pra chegar lá, só de elefante. Escolhemos o nosso, enorme e com a cara toda pintada, e fomos. Sentamos de lado, com as pernas pra fora da sela, como as mocinhas de antigamente. Vovó cismou que seus sapatos iam cair e fez a viagem toda com as pernas esticadas e os pés apontados religiosamente para o alto. Não relaxou um minuto. Já mamãe se esbaldou. Pulava de um lado pro outro, ria sem parar, parecia criança. Eu e Vovó descemos logo que chegamos, mas mamãe se recusou a deixar o elefante. Queria a todo custo continuar montada enquanto fazíamos a visita. Acabou mudando de idéia, mas não sem antes tirar uma foto com o bicho. Não uma foto qualquer, que fique claro. Mamãe fez questão de posar se equilibrando na cabeça do elefante. Correu risco de vida. E ainda botou o ridículo chapéu do domador, vermelho e cheio de pêlos. Se vc nunca viu sua mãe plantada logo acima da tromba de um elefante, esquece. Não há como imaginar a cena. Não é uma pena que justo esse filme tenha queimado? Sem provas, duvido que alguém acredite na façanha da mamãe.