27.3.20

o que temos

Maria sempre foi apaixonada por Felipe, desde criança. Felipe não percebia, não dava bola. Maria sonhava com o dia em que Felipe finalmente iria olhar pra ela, mas esse dia não vinha. Um dia, o dia chegou e Felipe finalmente chamou Maria pra sair. Marcaram pra noite seguinte e Maria não sabia nem o que fazer com tanta alegria, com tanta expectativa. O encontro aconteceu e Maria constatou que Felipe não era quem ela tinha idealizado. Era mais, muito mais, era o amor da vida dela. Felipe também caiu de amores, viu que não queria passar mais um único dia longe de Maria. E foi tanto beijo, tanto abraço, tanto olho no olho, tantas juras de amor, que parecia que ia ser assim mesmo, os dois juntos todos os dias, pra sempre. Aí, veio a quarentena, logo no dia seguinte. Justo agora que tudo tinha dado certo, que Felipe tinha se encantado, que ia ser só felicidade, o mundo  parou. Maria estava disposta a ignorar a tal  quarentena, mas Felipe não concordou. Maria chorou, implorou, mas Felipe não cedeu. O momento era de isolamento, não tinha jeito. Maria não se conformava, caía em prantos quando conversava com Felipe pelo facetime, tão lindo, tão longe. Sofria, sofria, morria de medo de Felipe desencantar. Felipe não entendia. Felipe, afinal, não tinha passado a vida esperando por Maria. Por que isso, Maria, pra que essa agonia? Teremos tempo, setembro está logo ali. Mas setembro não estava ali, não, setembro estava lá longe. Tem tanta avó longe de neto, tanto homem longe de mulher,  Felipe argumentava. Se eles aguentam, aguentamos também. Maria não se sensibilizava. A dor alheia não diminuía a dela própria. Felipe tentava consolá-la. Temos a internet, Maria, podemos nos ver, conversar todos os dias. Mas pra Maria internet não era consolo. Beijo por celular não vale nada, que celular não tem boca, abraço por celular não vale nada, que celular não tem braço, não tem corpo, não tem cheiro, ela pensava. Maria está coberta de razão. A vida pelo celular não vale nada. Mas é o que temos. 

25.3.20

vovó e a pandemia



Infelizmente, Vovó não viveu para ver estes tempos de pandemia. Uma pena, teria sido a glória. Vovó era uma visionária. Sempre desinfetou detidamente as compras do supermercado, embalagem por embalagem. Lavava de tudo, até banana. E olha que Vovó dizia que a banana era a fruta do Paraíso, pois segurando pela casca podia ser comida até com as mãos sujas. Dizia isso, mas mantinha controle higiênico rigoroso até sobre a fruta paradisíaca. Trocava os lençóis diariamente, deixava os sapatos na porta e assim que chegava em casa tomava banho e punha a roupa da rua pra lavar. Se tivesse vivido pra ver, ia ser difícil segurar Vovó em casa. Ia querer fiscalizar as ruas, dar conselhos para os passantes, mandar pra casa todos os velhinhos que aparecessem. Teria ciência dos riscos que correria, claro, mas argumentaria com razão que eles não eram páreo para ela. Não há como negar. Se todos fossem como a Vovó, essa coisa de vírus não teria chegado nem ali na esquina, muito menos se espalhado pelo mundo. Outra coisa que Vovó adoraria seria ficar grudada na televisão, acompanhando todas as notícias sobre a pandemia. Antenada, também passaria horas na internet e no whatsapp, trocaria mensagens o dia todo, se deleitaria com os vídeos e áudios com conselhos e relatos dramáticos. Não me entendam mal, Vovó não era alienada, tinha sentimentos, sofreria pelos outros. Mas pra ela, pessoalmente, este mundo limpo, desinfetado, obsessivamente higiênico, seria um sonho realizado. A neta confessa que pra ela também esse surto de higiene generalizado vem bem a calhar. A neta foi disciplinada pela avó, lava a mão vinte vezes por dia, ensaboa até esfolar, só abre porta de banheiro com um papelzinho ou com o cotovelo, mesmo dentro de casa, e por aí vai. Na vida normal, a neta esconde tudo isso, tem noção do ridículo. Já na paranoia, pode ser quem realmente é, recebe até elogios por seguir as recomendações médicas à risca, quem diria. Esse é o lado bom do drama. O lado ruim é o drama em si, claro, além dessa saudade tão grande da Vovó. 

22.3.20

novelas

Criança, papai não me deixava ver novelas. Via escondido, esticava o olho pro quarto da tia quando passava na porta, prestava atenção nos comerciais, ia acompanhando assim, como dava. Olhando pra trás, era tudo besteira, pura ingenuidade. Mal sabia papai que rumo as novelas iriam tomar. Do jeito que está, nem adulto pode ver mais. Ou do jeito que estava, nem sei como está agora porque há anos parei de acompanhar. Mas não parei de respeitar. Faz parte da cultura, faz parte da vida da gente, é coisa de brasileiro, produto nacional. Pois agora fico sabendo que as novelas vão parar. Logo agora que a mocinha finalmente ia beijar o mocinho, que a mãe ia fazer as pazes com o filho, que o assassino ia ser descoberto, que o final ia ser feliz. Não vai ter mais nada disso, vai ser jogo interrompido, história sem fim. Veio o vírus, as novelas vão parar. Claro, já parou trabalho, já parou escola, já parou passeio, já parou de tudo, as novelas também têm que parar. Não devia me espantar, eu sei.  Mas é que novela é fantasia, é outro mundo, não é pra ser engolida pela vida real. Ou vai ver foram as novelas que engoliram a vida, sem aviso. Vai ver estamos agora presos numa, forçados a viver capítulo a capítulo, sem saber o final. Só nos resta torcer pra que venha logo e que seja feliz.