16.11.14

nunca falha

A agulha nunca falhava. Acertava o sexo e o número de filhos de qualquer mulher que testasse. Se balançasse pra frente e pra trás, era menino. Se o movimento fosse circular, era menina. Se ficasse parada, não adiantava chorar, era sinal de que a pessoa não tinha filhos, nem ia ter. Quando chegou a vez da mãe, a agulha girou sem parar. Era menina! A mãe já sentia e agora estava confirmado. Só pra provar que a agulha estava certa, fez um exame de sangue logo no primeiro mês. Deu menino, sinal de que esses exames não valem nada. A mãe não se abalou. Em primeiro lugar, exame nenhum é 100% seguro e 0,001% faz muita diferença. Além disso, a mãe tinha um filho de seis anos e era claro que o sangue ainda tinha vestígios de macheza. Acima de tudo, valia a palavra da agulha. Se ela disse que era menina é porque era. Empolgada, a mãe começou a preparar o enxoval. Comprou montes de vestidos, lacinhos e brincos. Pintou o quarto todo de rosa e encomendou a mobília na mesma cor. O pai ainda tentou argumentar que não havia razão pra pressa, mas a mãe não tinha tempo a perder. Pra que esperar?  Era menina, a agulha não mentia. A agulha realmente não mentiu. O exame também não. No fim, não ganhou a fé, nem ganhou a medicina. Vieram dois, um menino e uma menina. Deu empate.

11.10.14

o meu preferido

Algumas vezes, eu perguntava: vô, quem é sua neta preferida? Ele amarrava a cara e não respondia. Eu insistia. Ele fazia bico, contrariado. Afinal, enchia o peito e dizia com força: lógico que é você! Outras vezes, de mãos dadas, ele do nada falava: é minha netinha preferida. E pra minha avó: é a mais amiga da gente, Nilzinha. Gostava também de me provocar. Quando eu perguntava, ele apontava a cabeça pra outra neta qualquer, indicando a preferência. Só com muito custo conseguia fazer ele me dizer o que eu já sabia. Lógico que era eu. Mais pra frente, passou a responder a minha pergunta só beijando a minha mão. Mal falava, mal me olhava. Às vezes, só de implicância, eu sei. Assim que você saiu começou a falar, me contavam depois. Com o tempo, fui deixando de perguntar. Só dizia: vô, é sua neta preferida. Abre o olho, eu quero ver seu olho azul. Ele sempre abria. Ontem, mesmo sabendo ser inútil, mais uma vez eu pedi. Ele não abriu, nunca mais vai abrir. Nem por isso vou deixar de pedir pra sempre. Vô, abre o olho. Eu quero ver seu olho azul.

10.10.14

o preferido



Com ar muito solene, chamava às vezes um neto para dar um dinheirinho. Adorava o ritual. Passava um tempo mexendo na carteira, exibindo notas de dez, vinte, cinquenta, criando expectativa. Por fim, puxava uma nota de dois reais, que entregava como se estivesse dando um milhão. Que vai fazer com tanto dinheiro? Nem sei, Vô, dá pra muita coisa. Gostava disso. Ai de quem não demonstrasse a devida empolgação com o presente. Mas isso era raro. Normalmente, todo mundo fazia planos de compras de roupas, carros, foguetes e por aí vai. Tinha perdido a noção do dinheiro, não custava brincar. Mas era ele quem brincava com a gente. Nunca perdeu a noção do dinheiro. Pra Bruninho, o preferido, sempre dava cinquenta. 

12.8.14

vovó e seus casos

Não conto o milagre, nem o santo, só digo que é o tipo de caso que Vovó adoraria contar. Vovó, aliás, não teria pudor e contaria tudo em detalhes, dando nome e endereço completo do santo. Vovó adorava uma fofoca, um caso, uma notícia escandalosa. Pra ela, não tinha nada melhor do que telefonar à noite pra todos os conhecidos, contando as novidades do dia. Houve até quem apelidasse as ligações de “Rádio Vovó”. Não sei se Vovó aprovaria, mas a verdade é que ela dominava mesmo a arte do noticiário. Ia misturando notícias boas, ruins, banalidades, grandes acontecimentos, tudo com carga dramática máxima. O resultado era sempre excelente e não perdia a qualidade, mesmo repetido umas quarenta vezes por noite. Mas o bom mesmo era ver Vovó falando ao vivo. Quando ela falava, fosse onde fosse, todo mundo parava pra ouvir. Quando a família se reunia, Vovó ficava quieta enquanto os filhos e netos tagarelavam sem parar. No auge da balbúrdia, se empertigava toda e dizia, muito solene: Uma vez, quando eu era pequena... Uma vez, lá em Minas... Uma vez, quando fulano já estava crescidinho... Ou no meu tempo isso, no meu tempo aquilo... Ia contando o caso, dando umas risadinhas picadas, até chegar ao fim da história e todo mundo explodir na gargalhada. Ou cair no choro, dependendo do tema escolhido. Vovó era boa mesmo naquilo. Contava e recontava as mesmas histórias, mas quem se importava? “Fulano diz que as minhas histórias são muito manjadas, mas adora ouvir”, Vovó gostava de dizer. O milagre de hoje tinha tudo pra se tornar um dos grandes clássicos da Vovó. Esse ela ia repetir um monte de vezes, sempre morrendo e matando todo mundo de rir. Uma vez, há uns dez anos... Uma vez, há uns vinte anos... Dá pra ouvir direitinho Vovó falando. Pena não poder contar porque a versão dela, como sempre, é impagável.

4.8.14

receita de grude

Pra fazer grude, ferva água, polvilho, cinco crianças, cavalos, lagoa, galochas, barro, paçoca, charrete, chiclete, carrapatos, avós, prendas, churrasco, música, pau-de-sebo, bambuzal. Mexa bem e deixe repousar antes da festança. Lambuze os barbantes, cole as bandeirinhas, pule a fogueira, dance a quadrilha. Raspe a panela, guarde as sobras e leve pra sempre com você.

26.6.14

vovó e a pornografia

A revista chega e a neta corre pra ler. Tarde demais, Vovó chega antes. Que revista é essa? Photo, uma revista francesa de fotografia. Posso ver? Não que Vovó se interesse por fotografia, absolutamente. É mais uma questão de curiosidade em estado avançado mesmo. Toma, Vovó, pode ler. Mas essa revista é pornográfica! Claro que não, Vovó! Mas tá cheio de gente pelada! Isso é nu artístico, Vovó. Artístico nada, é uma pouca-vergonha! Nunca pensei que neta minha pudesse ler uma coisa assim. Não foi assim que seu pai te criou! Pois saiba, Vovó, que meu pai sempre leu essa revista, fazia até coleção. O golpe é duro demais. Vovó arregala os olhos, cambaleia, quase cai. Vai ter um troço, a neta se procupa, pra que fui falar? Vovó balança a cabeca, recusa-se a acreditar. O seu pai, não, o seu pai não lia isso! Lia, Vovó, não perdia uma. Essa revista é um clássico da fotografia. Pois pra mim é puro lixo! Os dois caíram muito no meu conceito, diz, atirando a revista no chão e retirando-se, ainda zonza. Aí, é a vez da neta entrar em choque. Em página dupla, uma fileira de homens pelados exibe-se pra câmera, numa variedade de cores, formas e tamanhos capaz de fazer corar a mais desavergonhada das mulheres, o que certamente não é o caso da Vovó. Até a neta, de renomada sem-vergonhice, se abala. A revista realmente extrapolou todos os limites da decência. Não chega a ser pornografia, mas de artístico aquilo ali não tem nada. A revolta da Vovó é mais do que justa, a neta admite. Em solidariedade, decide nunca mais ler a revista. Vai só empilhando quando as novas chegam, sem nem abrir. Já Vovó, dizem, de vez em quando dá umas folheadas.