28.2.07

bisnáguis púris

O avô, capaz de viajar pelo tempo que for sem uma única parada, cede à pressão dos netos. Sabendo que a pausa não durará mais do que cinco ou, com sorte, dez minutos, disparam todos em direção à lanchonete, já formando fila. O avô vai perguntando o que cada neto quer e repetindo os pedidos ao balconista. Um cachorro-quente pra Luiza, um misto pro Tiago, um ovomaltine pro Pedro. E pra vc, Paulo? Bisnáguis púris, ele responde. Bis o quê, pergunta o avô? Bisnáguis púris, ele repete. Já irritado com a perda de tempo, o avô pergunta pela última vez o que o neto deseja. E ele, impassível: bisnáguis púris. O avô aí explode, condenando Paulo a terminar a longa viagem de barriga vazia. Fã número um do Mussum, seu trapalhão mais querido, Paulo prefere passar fome a admitir que o que quer é uma bisnaga pura.

26.2.07

crime impossível

Álvaro não vai desperdiçar a dor de cabeça da noiva. Toma seus cuidados: parte pra boate mais afastada da cidade e, nela, escolhe a moça sentada no canto mais escondido. Pra seu azar, a vítima é amiga da noiva e tem memória excelente. Esteve com Álvaro apenas uma vez, mas não esqueceu. Já ele, com a cabeça sempre cheia de moças, nem se lembrava dela. Na hora h, a surpresa: sou amiga da sua noiva. Apanhado, Álvaro nem discute, vira as costas e vai embora. Dá o noivado por perdido, mas, no dia seguinte, ainda tenta convencer a noiva de que foi a amiga quem se insinuou. Enfurecida, ela não lhe dá chance: não adianta mentir, minha amiga nunca me trairia. Repete isso, pede Álvaro, empolgado. Minha amiga jamais me trairia, e daí? Justamente, responde Álvaro. O crime era impossível! Crime o quê? Impossível, diz Álvaro, e cita de memória o art. 17 do Código Penal: " Crime Impossível - Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime." Trocando em miúdos: há casos em que, mesmo tentando, o crime simplesmente não pode acontecer. Matar um morto, por exemplo, é impossível. Pode-se usar faca, bala, veneno, não importa. Morto não morre duas vezes e ponto. Como o crime é impossível, não há punição nem pra tentativa. Sua amiga jamais te trairia, certo? Por mais que eu tentasse, o crime nunca aconteceria, não é mesmo? Então tá resolvido. Crime impossível, nada de castigo. Pode ir botando a aliança de novo no dedo.
E assim Álvaro se safa. Aprendam essa, meninos.

24.2.07

verbo intransitivo

O guia, indiano fluente em espanhol, faz as apresentações. Sou o sr. Ajay, este é o sr. Amar, nosso motorista. Vovó entra no carro fascinada. Amar, bonito nome. O sr. Amar, fluente apenas em hindi e inglês, devolve o Amar, fescdbjklok, com um yes, madam? Faço sinal de que não é nada. Ainda encantada, Vovó repete: Amar, é mesmo muito bonito, Amar. Amar, nrdofnbdfedkn, Amar. Yes, madam? Ela gostou do seu nome, explico. Dá pra parar de repetir o nome dele, Vovó? Mas eu não estou repetindo, só estou dizendo que Amar é muito bonito. Afdasfndkj fndklfedjkfnsd, wdfeefmd Amar dsa effhnehkjn. Yes, madam? Mas ele não entende, ele acha que vc está falando com ele. Não adianta argumentar, Vovó insiste no mantra. Amar... Amar... Yes, madam, yes, madam, faz coro o sr. Amar. No dia seguinte, só de ver Vovó, o sr. Amar já dispara um yes, madam atrás do outro. Assim contina por mais uns dois ou três dias, até Vovó, irritada, exigir um motorista menos tagarela. O sr. Amar é substituído pelo sr. Matar. Vovó detesta o nome. Matar, que horror! Ou, aos ouvidos do motorista - que não sabia o que estava por vir -, Matar, hjkbmkawesdz!

22.2.07

use camisinha

Sem se importar com idade, respeitabilidade ou qualquer outra coisa, Armando rouba uma camisinha da gaveta do filho. Depois de dias de indecisão, tinha resolvido correr todos os riscos. Faz xixi na camisinha. Não satisfeito, vai à cozinha adicionar água e uma boa dose de azeite. Entra no quarto pé ante pé pra não acordar a mulher. Mal contendo a excitação, acerta a bomba em cima do grupinho que, toda noite, arma uma gritaria bem debaixo da sua janela. Contente feito um moleque, volta a dormir.

15.2.07

mais uma de amor

Beatriz conhece os zoológicos de todas as cidades que visita. Na verdade, escolhe as cidades de acordo com as atrações de cada um deles. Foi a Lisboa pra ver o bode de duas cabeças. A Barcelona, pra conhecer o gorila albino. A Nova York, só pra gastar horas olhando o urso polar neurótico. Despreza os pontos turísticos, só quer saber dos zoológicos. Chega a passar dois ou três dias em cada um, revendo seus animais preferidos. Uma vez, caiu de amores por uma lhama. Não que não tivesse visto outras, mas aquela era especial. No primeiro dia, ficou no fundo da jaula, mas esbanjou charme. No segundo, se aproximou mais e Beatriz até flagrou um sorriso. No terceiro, também se apaixonou. Ficou horas parada perto da grade, olho no olho com Beatriz, que mal podia conter a emoção pela conquista. A cada um que passava, dizia: olha só, ela é louca por mim. De fato, o bicho estava vidrado, nem se mexia. Foi juntando gente pra ver o espetáculo. Ela hipinotizou a lhama, disse um menino. Foram feitas uma pra outra, suspirou uma velhinha. Quando parecia que iam ficar naquele namoro pra sempre, a lhama rompeu o encanto. Numa das viagens do almoço do estômago à boca, cansou-se da mastigação e pôs tudo pra fora, num jato só, sem chance para Beatriz. Ainda pensou em dizer: muito prazer, lhama, animal ruminante, mas achou que não precisava. Voltou pro fundo da jaula em silêncio mesmo.

10.2.07

direto do seu coração pro meu

Reclamação por email, a dona do blog não encaminha nem pros comentários, mas eis que surge ele, o comentarista que nunca deixa de assinar, e conquista lugar de honra. É, cronista, diga-me com quem andas...

"hj é dia 10/ 02, e sua ultima croniqueta fos escrita dia 06/02. já são 4 dias sem uma nova. será que vc foi atacada pelo virus da máscara e está fazendo doce?, estou me sentindo um leitor traido, e se continuar assim, só irei ler outros blogs, como o do noblat,os do globo, e outros que tais.brasileiro é fogo. essa miscigenação não deu certo. Heil Hitler. vamos atras da raça pura. mistura campolina com piquira, com mangalarga, com árabe, dá só cavalo meiõ-sangue que não serve para nada. exagerei: para charrete deve dar."

ps. calma, querido, não me deixe, não.

6.2.07

não importa o destino

Vovó adora um portador. É só alguém anunciar que vai viajar e ela já se anima. O incauto conta que está indo, digamos, para São Paulo. Ótimo, Vovó diz, estava mesmo precisando de um portador para lá. Pede licença e volta com montes de pacotes, a ser entregues em quatro ou cinco endereços diferentes. Se, em vez de São Paulo, a pessoa for pra Manaus, não há problemas. Vovó se assanha igualmente e desce com a pacotada. Viajou, não importa o destino, é portador. Tem gente que não entende como ela tem sempre alguma coisa pra despachar. A verdade é que Vovó gosta tanto da função que chega a manter um estoque de caixas vazias, só pra não desperdiçar um portador. Sabe que os destinatários não vão entender nada ao abrir os embrulhos, mas não se importa. Dificilmente alguém pede explicações. Quando acontece, não perde a pose. Suspira, inocente, e diz: não tinha nada? Meu Deus, e eu achando que o portador era confiável...

4.2.07

ronaldinho

A irmã, toda orgulhosa, manda um email com a foto tirada ao lado do ídolo. Carolina faz pouco caso. Eu que não perco meu tempo batendo fotos com desconhecidos. Ainda mais no meio de um monte de gente, mal dá pra te ver. Mais tarde, Lúcia, filha de Carolina, estranha a foto no msn da mãe. Ué, que que essa foto do Ronaldinho tá fazendo aí, mãe? Foto do Ronaldinho, não, senhora. Foto do Ronaldinho comigo! Não tá me vendo ali no cantinho, não?

3.2.07

reino

Os adultos criaram no sítio o Reino Encantado das Crianças. Não tinha nada demais, era só um quarto transformado em sala de brincar. Puseram lá uns livros, uma mesa de pingue-pongue, uns velocípedes, acho até que uma televisão. O Reino Encantado das Crianças logo virou Reino só e era tão reino que tinha até um riachinho passando por dentro, pra gente se sentir mesmo num castelo, desses de ponte levadiça. Era lá que nós ficávamos, no andar de baixo, enquanto os adultos ocupavam o andar de cima. O Reino não foi feito pra nós, mas pra eles. Quando queriam conviver, crianças na sala, quando não queriam, já pro Reino. Funcionava muito bem, embora a gente resistisse um pouco, de charme. Difícil dizer quantos dos vinte netos aproveitaram mesmo o Reino. Talvez uns dez. Os cinco seguintes continuaram sendo despachados pra lá, mas se sentiam mais prisioneiros do que donos do castelo. Os cinco últimos, descobri outro dia, não só não freqüentaram o Reino como sequer sabiam que ele existia. A décima oitava neta, diante do "já pro Reino!" da prima mais velha, respondeu, animada: vou, sim! Onde fica esse reino? O fato nem mereceria nota, já que milhões de crianças de hoje não conhecem nada da vida das crianças de ontem. Mas, dos milhões de crianças de ontem, só dez conheceram o Reino. Isso sim vale o registro.

1.2.07

à nata da bandidagem

O ladrão entra na casa pelos fundos, passa a mão numas galinhas e foge. Vovô acorda com o alvoroço e se levanta a tempo de atingir o safado com seu revolverzinho de cabeceira. Aconteceu há muitos anos, claro. Hoje seria impossível. Começa que o ladrão já ia entrar atirando, sem chance pro Vovô. Ok, digamos que não, mas ia carregar um fuzilzão e o revolverzinho não ia dar pra nada. Se fosse hoje, qualquer arroubo de valentia do Vovô ia acabar em desgraça. Digamos que não mais uma vez. O ladrão tem o fuzil, não atira, Vovô também não e o assalto acaba em paz. Certo, mas e as galinhas? Ladrão de galinha hoje em dia perde a viagem. Acaba sendo forçado a levar jóias e que tais. Não é justo. Pois, em homenagem à nata da bandidagem, providenciei uma galinha bem gorda. Tá morando lá em casa, pro caso de algum ladrão de classe querer levar.