17.4.20

cristo

O Cristo, do alto, olha a cidade cheia de gente e fica de lá pensando que diabos esse povo pensa que está fazendo. O Cristo sabe que deveriam estar em casa. Não porque tenham lhe contado, mas porque de outro modo não estaria fechado, e também porque, sendo Cristo, sabe de tudo. O Cristo se pergunta quanto tempo mais vai ficar sozinho, sem devotos, sem turistas. Isso ele não sabe e desconfia que nem Deus saiba. O que ele sabe, não por ser Cristo, mas por não ser idiota, é que quanto mais gente se amontoar, mais vai demorar pra tudo passar. O Cristo vê dias mais e menos movimentados, mas praia vazia mesmo, lagoa vazia de todo, isso ainda não viu. Sabe que há quem diga que vai com cuidado, mantendo distância dos outros, mas pensa que se forem todos por esse caminho, não vai ter espaço livre pra ninguém. Sabe que alguns se acham, e de fato são, imunes ao vírus, mas se espanta que não pensem nos outros. De tudo, o que deixa o Cristo mais danado é ver os velhinhos andando faceiros na rua, como se o drama não fosse com eles. Nunca pensou que as velhinhas carolas fossem demonstrar tanta desconsideração pelas próprias vidas e pela dele próprio, obrigado a permanecer sozinho na corcova do morro, por conta da teimosia alheia. O Cristo tem visto nos últimos tempos mais e mais gente fazendo festa na rua, dançando, se abraçando, fazendo pouco do vírus que está ali, de boca aberta, pronto pra dar o bote. Entende o povo, sabe que ficar sozinho não é fácil. Até ele, mesmo com a vista privilegiada, tem dificuldade em ficar isolado. Até ele fica tentado a descer de seu pedestal e se misturar aos outros nas ruas. Pensa nisso, fantasia, mas jamais faria. O sacrifício é necessário, ele sabe. Nem todos sabem, ele entende. Não julga, perdoa. Passa as noites em claro, vigiando a cidade, com os braços abertos sobre nós. Abençoa a todos, cumpre seu papel, esperando pacientemente que nós também façamos a nossa parte. Pra que ele possa voltar a ter gente a seus pés, lá no alto do morro.

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