5.5.07

o que realmente me espanta

Um dia uma mulher morreu lavando o cabelo no salão. Não que aquilo pra ela fosse novidade, nunca lavava em casa. Três vezes por semana, passava no salão. Ela e o cabeleireiro eram íntimos. Trocavam confidências, ficavam horas naquela função. Enquanto a conversa estivesse animada, o cabeleireiro ia lavando e relavando a cabeleira. Às vezes, chegava a passar umas cinco ou seis mãos de xampu, fora o condicionador. A mulher saía com torcicolo, mas nunca interrompia. A verdade é que era doida por ele. Quando não tinha o que contar, inventava. Falava sem parar pra ele não parar de lavar. No dia da morte, criou um enredo tão intrincado que, percebeu, precisaria de umas três lavagens pra desenrolar. Tentou interromper o relato, mas o cabeleireiro não quis saber de cenas dos próximos capítulos. Lavou os cabelos mecha por mecha, descoloriu, hidratou, fez de tudo, só pra não perder o final. A mulher, de tão apaixonada, foi em frente. E haja paixão, viu, pra suportar uma hora e meia numa daquelas cadeiras de salão. É uma forma sofisticada de tortura. O corpo vai escorregando devagar enquanto a cabeça fica presa no escorredouro. Com o tempo, parece que as duas partes vão se despregar. Dói que é uma beleza, mas a mulher não se rendeu. Antes do fim da história, porém, não resistiu e morreu. Pelo que deu no jornal, a pressão estourou uma veia no cérebro, qualquer coisa assim. O cabeleireiro se desesperou. Não tanto pela cliente, mas pela história sem fim. Quem já descobriu no final da leitura que faltava a última página do livro há de lhe dar razão. Uma história inacabada é um castigo quase tão grande quanto uma lavagem no salão. O cabeleireiro ainda tentou reanimar a mulher, mas não teve jeito. Ela morreu mesmo, lavando o cabelo no salão. Parece incrível, reconheço. Soa mais como invenção de cronista maluca, mas aconteceu de verdade. Pra ser sincera, o que realmente me espanta é que não morra uma por dia.

9 comentários:

maria rezende disse...

Gente, ouvi essa história e tive certeza de que era impossível morrer assim! A fonte da cronista é fidedigna? Eu sempre detestei aquela cadeira, sempre lavo o cabelo em casa pra não passar por aquilo, mas agora é uma questão de sobrevivência, né? Que jeito maluco de morrer...

Anônimo disse...

nunca gostei de lavar a cabeça em cabeleireiro apesar da massagem e do shampoo cheiroso. e olha que a vovó não sabe lavar o cabelo em casa...

Anônimo disse...

Incrível, inusitado. Adoro ler seus textos; me renovam.

Anônimo disse...

Vc é genial!!!

Mariana disse...

ai, anônimo das 14, até assustei.
brigada.

Anônimo disse...

Cadê o JC, gente?

Mariana disse...

não gosta mais de mim...

Anônimo disse...

cronica otima ,mariana.o que não faz a vaidade!!!!!. o pior é que esta praga pegou em alguns homens tambem, os tais de metrosexuais.

Anônimo disse...

Será que o JC está falando de alguém da família?