O desejo de uma vida toda estava se realizando. Desde pequena, sonhava com o Carnaval de Veneza. Agora, preparava-se para finalmente sair pela cidade, tomando parte na sóbria folia. Via Veneza pela janela enquanto se vestia. Amava as ruelas cercadas pelas águas, as gôndolas, as pontes. Sempre se imaginava andando por lá, sonhava até. Sempre no Carnaval, quando tudo era mais vivo e colorido. Queria caminhar pelas ruas, ser admirada, exibir a fantasia. Queria se fartar com o esplendor das fantasias dos demais foliões. Com as máscaras, principalmente, as máscaras. Já se via rodopiando pelos salões, com seu vestido vermelho e dourado, coberto de laços e babados. E a máscara, claro, a máscara. Tinha sido difícil escolher a sua. Nunca quis as brancas de porcelana, feitas em série. Queria uma máscara feita a mão, única. Não se preocupava com preço. Afinal, era Carnaval, era Veneza. Oscilava entre as que cobriam só os olhos e as que escondiam o rosto todo. Hesitava entre as colombinas, bizantinas, misteriosas, narigudas, aristocráticas, cômicas. Eram muitas, todas fascinantes. Acabou encomendando uma dourada com pedrarias e plumas volumosas que emolduravam a cabeça. Vestiu-a. Olhou uma última vez pela janela, caminhou até a porta, parou. Quis aproveitar um pouco mais a excitação, a alegria antecipada. Veneza estava logo ali. Pôs a mão na maçaneta, não chegou a girar. Ouviu ao longe um som irritante, cada vez mais alto. Acabou-se o sonho. Acordou do outro lado do mundo, atrasada para o trabalho. Arrumou-se, pôs a máscara da vida real, o grosseiro uniforme da pandemia, e saiu. Viu-se cercada por mascarados, mas não viu folia. Veneza ficava para outro dia.
4.7.20
25.6.20
vingança
16.6.20
quadrilhas
É junho, mas não há o que festejar. Neste ano, nada de música, fogueira, maçã do amor. Mas se festa junina não vai ter, quadrilha não vai faltar. Puxando a fila, o governador diz que fica todo mundo em casa, tudo fechado, é uma ordem. Aí, vem o prefeito e resolve fazer uma elaborada abertura gradual. Igreja abre logo de cara, sem restrições. Lojas de decoração também, vai saber por quê. Praia pode, mas só pra surfistas. Restaurantes, só pra comer na varanda. Shoppings, só praça de alimentação, em esquema takeaway. Não entendi quem vai take, se a clientela não pode entrar, mas deve ser burrice minha. Nas semanas seguintes, vai mudando tudo, numa verdadeira dança das cadeiras. Shopping só pra lojas, praia só no calçadão e surfista vai comer em casa. Quando todo mundo já decorou o esquema, vem o governador e diz que não é nada disso, fica tudo como antes, ninguém entra, ninguém sai. Aí, o próprio governador muda de ideia e resolve que abre, sim, abre tudo e de uma vez só. Parece mesmo quadrilha: olha a cobra, é mentira! De repente, vem o juiz, que não estava na história, e manda todo mundo ficar onde está, não abre mais nada, quem saiu, volta pra casa. Não demora muito, vem o Tribunal mostrar quem manda e libera tudo, porteiras abertas, palavra final. Olha a chuva, é mentira! E os cariocas, que já estão fartos de ficar trancafiados em casa, dedicados a achatar bem achatada a tal da curva, esperando o pico que nunca vem, têm que perder tempo e paciência acompanhando o vaivém. Mais do que a previsão do tempo, quem resolve sair de casa agora tem que consultar a regra em vigor. Mesmo quem não vai sair fica louco com isso. O carioca é antes de tudo um forte, mas pra tudo tem limite. Mas se fosse só isso, tudo bem, que briga de político e juiz, com o povo no fogo cruzado, volta e meia tem por aqui. Agora, a OMS, em plena pandemia, não dá pra tolerar. A OMS não para de jogar chuva e cobra pra cima da gente e depois diz que é mentira. Primeiro, disse que o vírus estava sob controle, depois, que era uma possível emergência internacional, e quando finalmente admitiu que era uma pandemia das boas, todo mundo já estava cansado de saber. Daí pra frente, não nos deu mais sossego. É pra usar máscara, não é pra usar máscara, é pra usar máscara de novo. O remédio não serve, o remédio talvez sirva, o remédio definitivamente não serve, o remédio talvez sirva de novo. Os assintomáticos transmitem, os assintomáticos não transmitem, os assintomáticos talvez transmitam de novo. A OMS mais parece um locutor alucinado, jogando a quadrilha de um lado pro outro, sem parar. Não tem quem consiga dançar assim, desbaratina qualquer um. O cidadão fica isolado em casa, perde emprego, não ganha um tostão, e diariamente tem que ouvir que aquilo que era ontem, hoje não é mais, mas amanhã pode ser que seja de novo. Anarriê! A cada erro, a OMS se defende dizendo que a doença é nova e ninguém sabe de nada. Se não sabe, não devia falar, ainda mais com pompa e convicção. Não que a esta altura alguém ainda acredite no que a OMS diz, mas é constrangedor ver um órgão que deveria se preocupar também com a saúde mental das pessoas causar tanta perturbação. Seria melhor mandar logo cada um fazer o que quisesse e salve-se quem puder. Termino em ritmo de quadrilha, que aliás é o que não falta no saqueado Rio de Janeiro: cariocas que não gostam do prefeito, que não gosta do governador, que não gosta do presidente, que não gosta da OMS, que não gosta de ninguém. Só pode ser.
santo
Lá na roça, todo domingo tem missa na capelinha. Os fiéis seguem em procissão pela beira da estrada, cantando as ladainhas com voz estridente. Rezam com fé, uns pra agradecer, outros só pra pedir mesmo. Nos últimos tempos, pasaram a pedir mais do que a agradecer, mortos de medo do bicho que mata. Depois que dois casos apareceram numa cidadezinha próxima, foi um tal de fazer promessa, de beijar pé de santo, de acender vela, que só vendo. Chegaram ao ponto de botar máscara no santo, durante a missa solene. Bem se sabe que pra alcançar a graça pedida não basta bajular: é preciso também fazer o santo sofrer. Santo Antônio é um que fica de cabeça pra baixo até conceder marido. O santo da capelinha foi condenado a sufocar com a máscara até afastar o perigo. O plano era bom, mas o menino não aguentou. Não conseguiu dormir, pensando no santo se debatendo, asfixiado. Madrugada alta, foi até a capela prestar socorro. Enfrentou bem o medo do escuro, mas na hora de tirar a máscara faltou coragem. Teve receio de ser descoberto e acabar castigado também. Castigo que ia ser de vara, bem pior que o do santo. Acabou fazendo só um buraquinho, que também não tinha sentido ir até lá e não ajudar o santo. Na missa seguinte, os fiéis viram a máscara furada e foi um alvoroço. Era um milagre, era a prova de que ninguém ali ia sofrer de falta de ar. O caso correu longe e juntou foi gente pra ver o santo milagreiro. Era uma romaria sem fim, uma montoeira de fiéis, das cidades próximas e distantes. Foi só enganação. Caiu todo mundo doente, tivesse ido à capela ou não. Ficou claro que de milagreiro o santo não tinha nada, era um impostor. Acabou destituído, dando lugar a uma Nossa Senhora vistosa, que essa sim não falha. Povo lá é devoto, mas não perdoa. Ou bem o santo entrega o milagre, ou vai pra lata de lixo. O falso milagreiro não escapou.
24.5.20
basta
16.5.20
dieta
10.5.20
eras
3.5.20
aviões
23.4.20
os miseráveis
17.4.20
cristo
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páscoa
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silêncio
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tomara
27.3.20
o que temos
25.3.20
vovó e a pandemia
22.3.20
novelas
4.2.19
carma
28.1.19
vovó e a realidade
21.1.19
o pai da noiva
24.12.18
Natal no dia 22
22.5.17
Vai dar cadeia ou não vai?
8.2.17
barão
Depois da vovó, a casa precisou de outro dono. Entre o prédio e a creche, venceu a creche. A casa ficou de pé, melhor assim. Cheia de crianças, como sempre. Reformada, dava pra ver da rua, mas continuou lá. Agora, por coincidência, ou sorte, ou amor, virou a creche do meu sobrinho. Vejo sua foto chegando no primeiro dia de aula. No carrinho, carinha desconfiada, pequeno demais pra saber que estava na casa da bisavó. Ao fundo, a porta de ferro, inconfundível, eterna. A porta ficou. Pedro vai passar por ela todos os dias. Meu sobrinho também vai crescer na casa da minha avó.
24.12.16
à nostalgia futura
26.11.16
Fidel Noel
Agora, a coincidência final uniu os dois ainda mais. Fidel se foi quando Papai Noel vem chegando. Fidel se foi enquanto Papai Noel e os duendes embrulhavam presentes, e capitalistas do mundo inteiro corriam pras lojas pra comprar o que podiam e o que não podiam. As coincidências acabam aí. Pra Papai Noel, o Natal vai ser o de sempre, sempre novo, sempre igual. Pra Fidel, evidentemente vai ser muito diferente, talvez azul, cheio de nuvens e anjos, talvez vermelho e quente, cheio de diabinhos, vai saber. Pros inimigos da revolução, não muda nada. Pro pessoal lá da ilha, não sei se o Natal muda muito, não sei se vai ter Papai Noel, mas é certo que não vai ter bicho papão. Fidel morreu. Papai Noel vive. Tchau, Fidel. Vem, Papai Noel.